Scolari em passado, presente e futuro
Com alguém que tem tanta história no futebol – e cujo jeito de trabalhar passa tanto pelo aspecto humano - como Luiz Felipe Scolari, cada assunto é capaz de render horas de ideias e exemplos interessantes.
O FIFA.com teve uma longa conversa com o atual técnico do Palmeiras, que falou sobre seu presente no Brasil e as dificuldades que teve no Chelsea e ainda contou um anseio para o futuro: dirigir alguma equipe na Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014, para então encerrar sua carreira:
Independente dos resultados que possam vir de agora em diante, é muito claro que o Palmeiras mudou muito nesses quase quatro meses desde a sua chegada. Era o prazo que você se dava para começar a dar a sua cara para a equipe?
Quando vim para cá, já antecipei minha ideia inicial, que era assumir uma equipe só em janeiro. Então vieram as propostas do Internacional de Porto Alegre, do Flamengo e então a do Palmeiras, que passava por dificuldades. E eu pensei: “se as coisas estiverem decididas na Europa para o meu filho, posso antecipar, porque ganho seis meses para montar uma equipe para 2011 e disputar em igualdade com os outros”. Foi o que eu fiz. Nos primeiros oito ou dez jogos fiz acomodações e tentei impor minha forma de trabalhar. Acho que a equipe melhorou mesmo foi no último mês e meio. Agora ela está 50% mais organizada. Ganhamos quase sempre por pouco e, se perdemos, também é por muito pouco. Falta apenas uma ou outra peça, uma ou outra situação de jogo para explorar, porque não tenho jogadores para fazer isso.
Essa, aliás, é uma de suas qualidades mais elogiadas: a disposição de adaptar o sistema de jogo de acordo com cada elenco...
Claro, porque tenho que conhecer as qualidades da minha equipe e, a partir daí, encontrar o melhor sistema. No Palmeiras nós não temos, por exemplo, um ponta veloz; alguém para quem possamos lançar uma bola de 50 metros na corrida. Por isso, temos que trabalhar muito a bola. Essa é uma das coisas que me falta hoje: um atleta para jogar nos flancos, com a velocidade para desafogar a jogada e ainda ter a possibilidade de criar algo. Em Portugal eu tinha isso com Cristiano Ronaldo, Simão, Nani... Está apertado? Joga a bola nele para abrir espaço. Hoje, as equipes voltam quase sempre com oito ou nove atrás da linha da bola. Então, trabalhando a bola, só na base da qualidade técnica, é sempre difícil criar chances.
Existe uma opinião geral de que seu trabalho fora do campo, para motivar o grupo, é sua principal virtude. Você concorda com isso?
Concordo em parte. Gosto que os jogadores saibam e sintam que vou defendê-los como um pai. Mas também existe o lado que, mesmo com 30 anos de carreira, eu entro em campo como se ainda fosse um técnico de juniores, com a mesma motivação. Senão acho que não complemento essa mensagem de proteção que eu procuro passar. E isso leva tempo. Quem diz que assume e em dez dias conhece tudo de uma equipe, dura três meses no cargo. É treinador-bombeiro. Nas minhas equipes, sempre fico dois ou três anos. Eu vou ajeitando na medida em que conheço a personalidade de cada um, de como reagem a derrotas ou vitórias. Só depois de uns seis meses posso dizer que conheço mesmo a equipe.
E o que faltou para que isso acontecesse no Chelsea, seu trabalho que durou menos tempo?
Faltou a direção do clube entender que, naquele momento, eu precisava de mais suporte. A direção teve receio - e eu entendi na época e entendo até hoje - porque nós não tínhamos ganho nenhum clássico. Mas tínhamos ganho todos os outros jogos, que nos deixavam a dois ou três pontos da liderança. E ali havia situações com alguns jogadores importantes que geravam dúvidas sobre o ambiente. Isso porque eu havia tomado posições que outros técnicos não tomaram. Então, o ambiente não era de domínio total meu, porque eu sofria alguma resistência, principalmente de dois ou três jogadores que tentaram se impor de uma forma que não era correta. Só que a importância dada por mim a esses jogadores não havia sido dada antes. Quis que eles se recuperassem não apenas para o Chelsea, mas para o resto das suas carreiras. E os próprios jogadores não entenderam assim, porque queriam entrar em todos os jogos. Esse foi um dos problemas.
Os clubes europeus, quando contratam técnico sul-americano, têm dúvidas sobre como eles trabalham. Nós temos nosso estilo de treinamento, e claro que algumas adaptações são feitas, mas devem ser das duas partes: dos jogadores e do técnico. São culturas que vão se juntar. Então, eu cheguei com uma forma de trabalhar que não era identificada com o futebol inglês. Na América do Sul, nós trabalhamos muito com fundamentos. Quando temos a semana toda de treinos, por exemplo, fazemos coletivo entre titulares e reservas, e lá isso não é comum. Isso também ajudou a que eu não permanecesse. Mas eu continuei com meu trabalho e sei que alguns jogadores, com isso, evoluíram. Por exemplo, o Anelka, que nem era usado, não se tornou de um dia para outro o goleador do Chelsea. O Ashley Cole não usava o pé direito e depois fez até gol assim. O Kalou, que era um jogador só de velocidade e tinha dificuldade para o drible, aprendeu a driblar estaca. A estaca está fincada no chão? Ok, mas serviu para depois começar a driblar os adversários, coisa que hoje ele faz. O próprio Drogba, que tinha uma lesão grave no joelho, hoje está curado graças ao meu trabalho. Não só do departamento medico, mas o meu, porque não aceitei que ele jogasse com problemas e, por isso, tive até dificuldades de relacionamento. Mas, daqui a 20 ou 30 anos, quando dois ou três estiverem caminhando sem problemas, eles vão se lembrar de mim. E, se não se lembrarem, eu fico feliz mesmo assim, porque sei que essa é minha forma de agir. Eu tenho 62 anos e estou inteiro porque meus técnicos me preservaram. Nunca falei isso antes e não falo agora para justificar nada. Entendi que não ganhava os clássicos, que estávamos dois pontos atrás do líder e que havia alguns problemas de relacionamento. E pronto. Fiquei triste, porque queria permanecer e gostava. Acho o futebol inglês maravilhoso. Mas, tive que sair e saí.
Essa situação poderia ter sido diferente se não houvesse a barreira do idioma para superar?
Seria muito mais fácil para mim, porque usaria não apenas as palavras normais, mas outras que muitas vezes se usam num campo de futebol. São palavras um pouco mais fortes, e às vezes um jogador de futebol entende mais aquilo do que uma conversa de amigo. Seria diferente, sim. Você tem que procurar palavras, interrompe seu pensamento e muitas vezes não sai a coisa certa. Agora, se é em português, eu digo aquilo que tenho que dizer, ainda aumento um pouco mais e pronto.
E qual é o segredo para ter o grupo a seu lado trabalhando em períodos curtos de convívio, como numa seleção?
Eu transformo a seleção num clube. Faço com que eles entendam que, quando servem à seleção, é como se estivessem num outro clube durante aqueles dias. Eu nunca pedi mais do que 21 dias para trabalhar antes de uma competição. Muitos técnicos reclamam que antes da Copa precisam de dois meses, mas, com 21 dias de jogadores à disposição, você nunca pode se justificar dizendo que eles estão cansados, que foi desgastante... É tempo suficiente para deixá-los em condições perfeitas, técnica e fisicamente.
Você tem alguns casos marcantes de jogadores que, independente do momento que viviam no clube, renderam muito em suas mãos na seleção, não?
Claro. O Costinha, por exemplo: era da minha confiança, mas era um jogador de que muita gente não gostava, porque tinha um estilo que não era chamativo. Ele estava sem jogar na Rússia, sem nem treinar, e nós o chamamos. Fizemos um acordo com o Belenenses e ele ficou treinando 15 ou 20 dias antes da convocação para a Copa de 2006. Foi chamado e foi titular. Outro exemplo: em 2002, nós da comissão técnica e médica assumimos uma posição com o Ronaldo. Ele foi liberado pelo Héctor Cúper, técnico da Internazionale, para trabalhar conosco um mês antes. O Cúper me disse: “Felipe, pode levar o Ronaldo agora. Ele vai entrar em condições e vai te dar o titulo mundial, porque ele é bom demais.” Mas havia um plano que determinava um limite de minutos para ele jogar em cada momento da Copa. Na estreia com a Turquia, o jogo estava 1 a 1 e chegou esse limite. Eu o tirei para colocar o Luizão, porque havia um plano e era preciso seguir. Claro que, em determinados momentos, você pode correr o risco, porque você é o técnico, mas existe uma base. Então, vale a pena correr riscos por gente em quem você confia.
E o jogador percebe essa confiança depositada, não?
E como. Vou te dar mais um exemplo: quando cheguei à Seleção, um dos jogadores mais contestados do Brasil era o Rivaldo. E eu, na primeira oportunidade que tive, declarei – e fui muito criticado por isso – que, jogando bem ou mal, nos próximos dez jogos ele seria convocado. E como ele se sentiu? Confiante. No Mundial foi nosso jogador taticamente mais importante.
Naquela Copa de 2002, diferente do que havia feito durante boa parte da carreira, você optou por jogar com três zagueiros. Por quê?
Tudo depende de quem você tem à disposição. Naquela época eu tinha dois laterais que eram como pontas, Cafu e Roberto Carlos. Eu tinha um zagueiro central que, quando pega a bola, quer chegar como centroavante, o Lúcio. Tinha o Edmílson, que tinha começado a carreira como volante, e ainda o Roque Júnior e o Polga, que também jogaram no meio-campo e sabiam sair jogando. Então, eu pensei: vou liberar os laterais, porque com ou sem liberdade eles vão acabar atacando, porque é a característica deles. E vou segurar mais a minha zaga para correr menos riscos. Às vezes, durante o jogo o Edmilson jogava de volante e os adversários nem percebiam. De repente tínhamos mais um jogador de meio. Eu não tinha essa ideia no início. Na preparação para o Mundial é que decidi. Porque assim eu sempre tinha sete jogadores me resguardando e, quando atacava, era com quem mais tinha talento: o trio da frente(Ronaldinho, Ronaldo e Rivaldo) e os laterais.
Você já esteve em duas Copas do Mundo e em ambas chegou até as fases finais. Pretende viver uma terceira?
Olha, meu contrato com o Palmeiras vai até 2012. Depois disso, acho que posso ainda trabalhar com uma seleção nas eliminatórias e, então, ir para a Copa de 2014 e terminar minha carreira como técnico lá, num Mundial dentro do meu país. A Copa é diferente de tudo: o envolvimento com as outras equipes, o contato com os técnicos, a amizade que se cria desde os seminários e congressos... É muito bonito. Independente de trabalhar em mais uma Copa, em 2014 vou ter 65 anos e vou encerrar minha carreira dentro de campo. Vou estar envolvido com futebol – talvez como supervisor, gerente geral - mas não quero estar no dia a dia, de uma forma tão envolvente como hoje.
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Benê Lima