Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

terça-feira, novembro 30, 2010

Barcelona x Real Madrid: Duelo de gigantes

Duelo de gigantes
A arte e a graciosidade dançante do Barcelona derrubou e pulverizou a estrutura a régua e esquadro do Real Madrid – a criatividade dinamitou uma certa racionalidade geométrica
José Antunes de Sousa
No sólo hubo fútbol sobre el césped, también hubo momento para pelearlo.

Ele é dos tais acontecimentos - e este o é em escala global – sobre o qual é até aconselhável escrever antes da sua realização. É o que estou a fazer: prefiro escrever antes mesmo de as equipes do Barcelona e do Real Madrid subirem ao palco majestoso e arrepiante de Camp Nou: não temos ainda o resultado a condicionar e a contaminar o que se diga.

E o que dizer de um jogo de futebol para o qual se preveem mais de quatrocentos milhões de espectadores e que terá entre os seus intervenientes nada mais, nada menos, do que treze campeões do mundo e dez nomeados para a eleição de melhor jogador Fifa 2010-2011?

Xavi celebró con rabia y cogiéndose el escudo del pecho el primer gol del partido.

A primeira e a mais óbvia: que coisa tão extraordinária encerrará um tal jogo para motivar a adesão apaixonada de tanta gente nos quatro cantos do mundo? E haja quem se atreva a declarar como definitiva uma resposta que se disponha a dar – será sempre do domínio da hermenêutica e, por isso, do vislumbre tacteante, uma resposta que vise explicar convincentemente um espectáculo tão imediatamente emotivo, mas tão furtivamente complexo, como é, afinal, um simples jogo de futebol (que surpreendentemente se joga com os pés), tendo sobretudo em conta os singulares condimentos que neste supremo duelo espanhol intervêm.

Hizo de ariete y se quedó solo ante Casillas para resolver como un 'killer'.

E até a própria enunciação desses condimentos se arrisca a ficar incompleta – tentemos, porém, a referência a alguns, pelo menos. Desde logo, este, óbvio e empolgante, o de se enfrentarem as duas equipas mais poderosas e com maior história da liga mais milionária e mais midiática do mundo, a liga espanhola, e com o picante aditivo de estarem, neste momento, separadas por um mísero ponto no topo da tabela classificativa. Depois, o fato, já referido, de ser este o ensejo privilegiado para uma planetária passerelle para o desfile de alguns dos mais celebrados e eletrizantes ícones do mundo da bola. E, neste particular, avulta esse duelo, que ambos desdramatizam, mas que toda gente exacerba e acentua, entre Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. Mas, aqui impõe-se que nos interroguemos sobre o porquê de tanta rivalidade – ou se essa pretensa rivalidade existe apenas na cabeça (ou no coração?) dos milhões de adeptos de um e de outro.

Villa, en su primer Clásico, pelea un balón con Cristiano Ronalso

Sim, insisto que haverá para lá do modo necessariamente peculiar de cada um se relacionar com o jogo, que tão acesas paixões desperta nessa, assim forçada, oposição de um ao outro? Que um é mais eficaz do que outro? Não, que os números põem-nos a par – eles estão praticamente empatados no que respeita ao número de golos nesta temporada. Que um joga mais para a equipa do que o outro? Também não me parece: ambos executam artísticas jogadas individuais que decidem jogos, mas ambos revelam bastante disponibilidade para o jogo coletivo. Que Cristiano Ronaldo é mais teatral do que Messi? Sim. E mais fiteiro e circense? Também. Mas ambos, com o seu estilo serpentino e letal, Messi, e, com o seu estilo galopante e mágico, Cristiano, são, sem dúvida, fantásticos jogadores que, sintomaticamente, convergem no que se poderia considerar a perfeita simbiose entre a criatividade, a audácia, a magia e a força, isto é, eles concretizam, no esplendor da sua exuberância, a expressiva tipologia do jogador latino-americano.

Villa repitió poco después tras un pase milimétrico de Messi que resolvió con maestría.

Sendo assim, o mais certo é que tenhamos que procurar fora do terreno de jogo alguns dos motivos que alimentam tão opostas paixões. Algo deve, pois, haver que, apesar da irmanação na arte de jogar, os separa. Sim, separa-os a arte de viver: como ícones, eles exemplificam, através da imagem social que projetam, modelos, eu diria, opostos de viver a vida. Um, Messi, com aquele seu ar de menino, algo assustado, recatado, simples, modesto e tranquilo, enquanto outro, Cristiano Ronaldo, extrovertido, exibicionista, que parece ter um prazer particular em andar nas bocas do mundo. De Messi o máximo que a gente se atreve é conjeturar uma vida desafogada, boa e tranquila. De Cristiano, pelo contrário, abundam constantes relatos públicos e publicitados das suas escapadelas, das suas alegadas paixões, dos seus caprichos, das suas mansões, dos seus automóveis topo-de-gama.

Um, Messi, é franzino, de aspecto frágil, que sugere até um certo apagamento, enquanto Cristiano Ronaldo é um Adónis, entroncado e esbelto, que parece, com aquele seu ar trocista, comprazer-se com a devassa voyeurista que proporciona aos seus inúmeros fãs. E eis como este jogo é também o palco onde se opõem dois tipos de herói – um, o herói das mães que sempre sonham com um rapaz, assim atilado, para as suas filhas, outro, o herói de espada em riste e que se compraz com o público aplauso das bancadas.

Messi y Cristiano protagonizaron el duelo individual de 'cracks'. A los puntos lo ganó el azulgrana

Um, Messi, símbolo de uma felicidade mais soft, mais serena e porventura mais duradoira, enquanto Cristiano Ronaldo personifica mais o ideal de uma felicidade improvável e súbita, mágica e marcadamente hedonista, talvez mesmo sensualista. Sim, caros amigos, porque o jogo carrega uma dimensão simbólica que se alimenta do sulco coletivo da vida – e, através da constelação semiótica dos vários elementos que o integram, veicula pedaços de sonho e de frustração de milhões de pessoas que, à semelhança do que acontecia na representação da tragédia grega, se envolvem num exercício de transmutação catártica: fazem do jogo da bola o jogo das suas vidas.

Mas este jogo de Camp Nou reedita, no banco, o duelo que todos projetam no terreno de jogo. Frente a frente, dois dos mais celebrados treinadores da atualidade, ambos expressão cintilante de um sucesso meteórico, ainda que mais recente o de Pep Guardiola. De um lado, a insaciável gula de vitórias de Mourinho que vem colecionando títulos por essa Europa fora, de outro, Guardiola que, após uma fantástica carreira como jogador, regressa ao seu Barça e, logo no seu primeiro ano de treinador, ganha literalmente tudo o que havia para ganhar.

Ésta acción corresponde a la única jugada con peligro del Madrid en la primera mitad. Fue en una falta lejana de CR7.

Mourinho e Guardiola, símbolos ridentes do sucesso profissional, mas, também aqui, um contraste, uma oposição bem evidente entre o perfil florentino, elegante, manhoso, arrogante e belicoso, de Mourinho e o perfil sereno, mais ao jeito de um professor primário, mal vestido, discreto e até humilde, de Guardiola. E eis como também, ao nível de treinadores, se confrontam surdamente dois modelos de viver a liderança, se não mesmo a própria vida: uma mais centrada numa lógica de auto-empoderamento do grupo de trabalho, outra, a de Mourinho, bastante condicionada pelo discurso antitético visando o adversário, como forma de robustecer as defesas do próprio grupo.

Mas há mais: os próprios clubes consubstanciam projetos político-sociais que têm alimentado a dialética afirmativa do próprio Estado espanhol. De um lado o Real Madrid, enquanto coletor institucionalizado de uma paixão popular dirigida à sustentação de um Estado centralista, personificado na hegemonia de Castela e Aragão: a difusão e a dispersão do amor clubístico pelo Real funcionaram como atalho expedito de legitimação e acatamento de tal hegemonia. Do outro lado, o Barça, veículo apaixonado dos fervores autonomistas, se não mesmo independentistas, dos catalães – convém, a este propósito, não esquecer que o seu presidente, Josep Sunyol, foi primariamente executado pelas tropas falangistas, nas imediações do estádio, aquando do início da guerra civil. Para não falar do incrível e rocambolesco episódio do desvio de Alfredo Di Stéfano, originariamente destinado ao Barca, para o Real Madrid, episódio protagonizado, ironicamente, por Franco, que, não apreciando o futebol, apreciava, contudo, e muito, o jeito que as paixões a ele associadas davam, quando postas ao serviço de uma política de consolidação imperial no conhecido contexto de multinacionalidade que caracteriza o território espanhol.

Foi, no meio de muitos milhões de euros, tudo isto que esteve em jogo, uma vez mais. Valha-nos, porém, a dimensão catártica do espectáculo: na torrente manifestativa das emoções muito do que de pérfido nelas se continha se esvai no tropel do vozerío e dos abraços.

Messi recibió amarilla por simular un codazo de Carvalho. El portugués le tocó con el brazo, pero no fue para simular tanto.

Há, porém, uma questão de fundo que se nos cola à pele. Trata-se de um duelo em várias frentes, sem dúvida. Mas é no interior do próprio futebol que ele se trava – anima-o, no caso de ambos os contendores, a mesma razão: o sem-razão que, afinal, o próprio futebol é. Ambos os protagonistas cooperam no mesmo efeito final de sedação e anestesia das massas – no ínvio designo da alienação. Que é pena? Sim, que há tanto para fazer…Mas é como na questão da morte: não seríamos capazes de viver se passássemos o tempo a pensar nela. E o futebol é, a seu modo, também essa válvula de segurança que colabora na nobre tarefa de nos ajudar a manter-nos razoavelmente satisfeitos com a vida.

A presença do Real Madrid nas terras rebeldes da Catalunha, onde quis simbolicamente impor a soberania hegemônica de Castela, redundou numa pesada e humilhante derrota. E não deixa de ser curioso que essa mesma Castela que tão assediante fora sempre em relação à coroa portuguesa, tenha, agora, confiado os seus destinos a um “general” português.

No final de tão espetacular refrega, eis que Messi se sobrepôs a Cristiano Ronaldo e Guardiola a Mourinho

A arte e a graciosidade dançante do Barcelona derrubou e pulverizou a estrutura a régua e esquadro do Real Madrid – a criatividade dinamitou uma certa racionalidade geométrica.

E Mourinho saiu vergado ao peso da maior derrota da sua carreira. Talvez para que possa finalmente entender que a derrota é elemento constitutivo do próprio jogo. E que a bola é realmente redonda, como o é a Terra – por isso, sabemos que, ao dia, sobrevém a noite. Sempre. como o é a Terra – por isso, sabemos que, ao dia, sobrevém a noite. Sempre.

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Benê Lima