Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, dezembro 30, 2009

Humanas e Socias
Mitos construídos III: detecção de talentos no futebol e a relação com o imaginário acerca do jogador brasileiro
Como se dá a relação entre os critérios de seleção e o imaginário? Existe alguma relação entre eles?
Felipe Rodrigues da Costa

Introdução

Nos artigos anteriores, debatemos dois assuntos que permeiam o futebol nacional: o desenvolvimento da crônica esportiva no País e relação futebol-arte e preparação física, contextualizado à vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970. No campo de jogo, o futebol brasileiro carrega consigo uma mitificação sobre sua prática. O nosso futebol é conhecido pela técnica, pela plasticidade, pelas jogadas fantásticas, enfim, pelo espetáculo que os atletas dão em campo: o tão propagado futebol-arte. O que podemos perceber na literatura jornalística e, por vezes, acadêmica analisada é o discurso de que o brasileiro carrega um estilo próprio de jogar: malicioso, técnico, habilidoso, estilo que suscita expressões como “o artista da bola”, relacionadas ao talento constituído do jogador brasileiro.

É assim que não só a esmagadora maioria dos torcedores, mas também muitos cronistas esportivos caracterizam os jogadores brasileiros, considerando o estilo de jogo brasileiro como constituído de alegria, improvisação, floreios, cheio de ginga e malandragem (SOARES; LOVISOLO, 2003).

Dentro desse contexto, questionar até que ponto os valores e características identitárias do futebol brasileiro são levados em conta pelos selecionadores de talento no futebol? Quais são as representações explicitadas pelos selecionadores sobre o processo de detecção de talentos no futebol? Quando da pesquisa de monografia, ou trabalho de conclusão de curso, tentei entender como se dá essa relação entre os critérios de seleção e o imaginário, se existia alguma relação entre eles. No âmbito do futebol capixaba, concluí que não. No decorrer da pesquisa, percebi que o que movimenta o clube em direção às peneiras é a necessidade de buscar jogadores que se adequariam à realidade do grupo, sem pautar o futebol-arte – e seus critérios estabelecidos – como parâmetro. A possibilidade de se encontrar um talento é rara, e essa dificuldade estaria relacionada ao torneio infanto-juvenil Copa A Gazetinha, que facilita a saída dos novos jogadores capixabas, impedindo que esses talentos cheguem ao clube da Primeira Divisão. E para o futebol brasileiro? A busca de jogadores é pautada pelo futebol arte?

Para tanto, proponho discutirmos alguns critérios utilizados na avaliação quando da seleção dos atletas e o imaginário de futebol-arte criado/desenvolvido pelo brasileiro, relacionando esses debates, argumentando com autores que desenvolveram trabalhos que envolvessem aqueles que vivem o cotidiano do futebol.

Critérios estabelecidos versus Imaginário construído

O futebol brasileiro, dentro do seu contexto de futebol-arte, possui características relacionadas aos jogadores que são muito difundidas no meio esportivo: técnico, habilidoso, dono de um estilo próprio, bem brasileiro. A respeito dessa força simbólica e do processo de detecção de talentos, pudemos observar que o futebol-arte, o jogador habilidoso, técnico, não é o procurado dentro dos padrões do futebol capixaba, devido a vários fatores, que fundamentam a seleção de talentos da maneira como é realizada, e que de alguma forma supre as necessidades do clube. Por exemplo, do ponto de vista maturacional, a altura é muito considerada em determinadas posições e justifica algumas maneiras de jogar. Como falou o Informante 2: “Então pode fazer diferença no futebol, porque, dependendo da posição dele, hoje ‘ta’ dificultando muito, o futebol ‘ta’ indo muito pelo tamanho do atleta. A não ser que seja um pequeno fenomenal” (COSTA, 2005, p. 27).

Fisiologicamente, há que se considerar a força, a velocidade, a flexibilidade, as resistências – anaeróbia e aeróbia (PAVANELLI, 2004). Esses critérios são avaliados durante o coletivo, tendo em vista que a seleção dos jogadores é feita baseada em situação de jogo. Não se falou em testes físicos para selecionar os jogadores, mas as valências físicas foram citadas como critérios a serem observados, o que demonstra a importância dada à condição de crescimento e desenvolvimento maturacional do jogador dentro do processo de seleção de talentos instituído em todo o País, não só no Espírito Santo.

“Os formadores, no entanto, têm sérias dúvidas de que ele consiga chegar aos profissionais do Inter, e não se trata de falta de talento. ‘O problema é o tamanho’, dizem todos” (DAMO, 2005, p.136).

Paoli (2007) ao estudar o processo de seleção de atletas no Brasil, emerge alguns dilemas identitários que permeiam a construção do futebol nacional: trata da constituição da identidade nacional e do estilo brasileiro de jogar futebol; analisa o conceito de talento ao contexto do futebol brasileiro; descreve o fluxo dos jogadores nas categorias de base do futebol brasileiro, a partir de clubes importantes no cenário nacional. Ao final de sua pesquisa, problematiza os discursos dos treinadores e observadores técnicos referentes aos critérios que são adotados na seleção e promoção dos atletas, no sentido de desvendar se os critérios estão relacionados ao imaginário produzido. O autor constrói vários argumentos que tratam do percurso do atleta das categorias de base, além das formas de entrada desses atletas no clube, bem como das possibilidades de sua saída. Sobre isso, Paoli (2007, p. 236) conclui que:

O talento não pode ser detectado com base na aptidão demonstrada em uma única avaliação e ou mensuração, mas a identificação de talentos é parte de um processo de desenvolvimento, que se torna aparente durante as etapas de treinamento, testagem e mensuração sistemática, concomitantemente com o treinamento e participação real em competições esportivas. A detecção dos talentos deve ser efetuada, sobretudo, a partir da observação pelos treinadores do jovem jogador nos treinos e nas competições. Isto é, a partir de procedimentos subjetivos e empíricos, o que frequentemente dará origem a erros, devendo depois comprovar o processo de detecção e seleção de talentos, através de estratégias científicas adequadas, sem, no entanto, subestimar o papel dos treinadores e da observação pedagógica.

No que se refere especificamente ao debate traçado para este breve espaço, o autor aborda algumas questões de representação do futebol brasileiro, caracterizado como futebol arte, de extrema habilidade, e que hipoteticamente serve de referência aos selecionadores nas categorias de base, que buscariam a manutenção desse futebol. Antes, Paoli (2007) mostra que os treinadores e olheiros buscam jogadores que vão dar equilíbrio à equipe, sobretudo no meio de campo, dando suporte tanto para o setor defensivo quanto para o defensivo.

Na percepção dos nativos é raro atualmente, uma equipe no futebol brasileiro, seja nas categorias de base e profissional contar no elenco com jogadores oriundos de um único estado. Há uma diversificação expressiva de jogadores de todas as regiões do país, e, em alguns casos até com jogadores de outros países. O futebol brasileiro como um todo, ou seja, a escola brasileira de jogar futebol é um misto no que se refere às características dos jogadores e dos estilos de praticar o jogo(PAOLI, 2007, p. 237).

Ou seja, o futebol brasileiro não apresenta somente a característica de arte, de habilidade.

[...] a identidade do nosso futebol não é, e não foram constituídas apenas por estas características, mesmo nos seus mais brilhantes momentos. As representações contidas no futebol “força” e “arte” devem se articular para alcançar os resultados esperados nas competições. O equilíbrio entre as duas características é importante, pois é a partir daí que o futebol se estrutura (PAOLI, 2007, p. 238).

O autor com isso, nos mostra que o processo de seleção envolve tanto características do “futebol arte” quanto do “futebol força”. Toda a cadeia proposta para o desenvolvimento do atleta é determinante em sua seleção, culminando em valor de mercado. Ter um jogador habilidoso, mas que traz pouco resultado para o clube não interessa mais. Como “futebol força” devemos ter em mente algo além de uma forma pragmática de se praticar o futebol. Esse estilo, praticado por ingleses, alemães e italianos apresenta uma característica fundamental ao futebol: a disciplina.

O imaginário que cerca o futebol brasileiro é o da arte, da habilidade, do jogo desenvolvido com qualidade técnica insuperável, muitas vezes sendo lembrada a seleção tricampeã em 1970 como o baluarte para tal argumento. Em outro momento, percebemos que muito além da preparação técnica, a preparação física a qual foram submetidos os atletas, e o rendimento da equipe não deixa dúvida da importância da preparação científica para a conquista daquele título – claro, além da qualidade técnica dos jogadores. Essa raiz “futebol arte” está tão bem sedimentada no imaginário, que percebe-se nos discursos daqueles que selecionam os atletas na base, a assunção da habilidade dos jovens, relacionam ao futebol arte – reconhecimento do imaginário – mas que, no momento de definição daqueles que serão selecionados, outras perspectivas são observadas.

De todo o processo que se percebe para chegar ao jogador talentoso, dentro do entendimento de mercado, o futebol brasileiro parece já ter entendido o recado: trabalhar e valorizar o jogador de forma global, desde a sua detecção, seleção e promoção. E a forma global significa aliar o futebol arte, ao futebol força, culminado em um jogador completo, derrubando mais que um mito, e tratando as características identitárias do futebol, e sua evolução, de maneira coerente.

Biblioteca

COSTA, Felipe Rodrigues da. Detecção de talentos no futebol capixaba: critérios e relação com a representação cultural acerca do jogador brasileiro. 2005. 75p. Monografia (Licenciatura em Educação Física) – Centro de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2005.

DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França.2005. 435f. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

PAOLI, Próspero Brum. Os estilos de futebol e os processos de seleção e detecção de talentos. Rio de Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Educação Física) – Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2007.

PAVANELLI, Cláudio. Testes de avaliação no futebol. In: BARROS, Turíbio Leite de; GUERRA, Isabela (Org.). Ciência do futebol. São Paulo: Manole, 2004. p. 67 – 84.

SOARES, Antonio Jorge; LOVISOLO, Hugo. Futebol: a construção histórica do estilo nacional. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003.

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