Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, dezembro 16, 2009

O sonho na sociedade contemporânea: juventude e futebol
A criatividade, o sonho, as projeções e o futuro se transformam em mercadoria-consumo-marca, repletos de implicações simbólicas, as quais atribuem significado e sentido às expectativas
Carlos Alberto Máximo Pimenta

Resumo

Analisei o processo de formação do jogador de futebol no estado de São Paulo, precisamente na região do vale do Paraíba paulista, a partir da leitura do que os jovens inseridos na busca pelo sucesso da carreira profissional esportiva denominavam de sonho. A pesquisa centralizou-se no resgate dos relatos e na constituição do imaginário de três entrevistados, no período de 1997 a 2001, com o objetivo apontar os elementos que compõe o sonho na sociedade contemporânea, tendo como referência o significado e o sentido atribuído na busca do sucesso nessa profissão. Aponto que o jovem acata a persistência, o reconhecimento, o econômico, a relação com o universo feminino e a projeção midiática do jogador bem sucedido como marcas indispensáveis ao sucesso de sua projeção e sonho.

Abstract

I analysed the process of formation of the football player in the state of São Paulo, precisely in the region of the “vale do Paraíba paulista”, from the reading of what the young persons inserted in the search by the success of the professional sporting run were calling of dream. The inquiry was centralized in the redemption of the reports and in the constitution of the imaginary one of three interviewed ones, in the period from 1997 to 2001, in spite of the fact that the objective pointed to the elements what the dream composes in the contemporary society, taking as a reference the meaning and the sense attributed in the search of the success in this profession. I point that the young person respects the persistence, the recognition, the economical thing, the relation with the feminine universe and the projection midiática of the player well succeeded like essential marks to the success of his projection and dream.

Este artigo é dedicado à Márcia Regina da Costa, pessoa admirável com a qual tive a honra de conviver e respeitar a vida em seus limites.

Introdução


Analisei o processo de formação do jogador de futebol no estado de São Paulo, precisamente na região do vale do Paraíba paulista, a partir da leitura do que os jovens inseridos na busca pelo sucesso da carreira profissional esportiva denominavam de sonho1.

Falo do sonho acordado, das projeções e das expectativas de realização pessoal em torno do futebol profissional. Notadamente, esse estímulo se dá por vias externas, na dimensão do social, influenciado por uma série de fatores simbólicos, socioculturais, políticos e econômicos presentes no universo desse esporte e na socialização de determinado grupo de jovens.

A pesquisa centralizou-se no resgate dos relatos e na constituição do imaginário de três entrevistados2, no período de 1997 a 2001, com a finalidade de entender o que eles diziam ser sonho. Os entrevistados, denominados de iniciantes-iniciados, termo utilizado para indicar os candidatos à carreira esportiva em fase de testes (iniciantes) ou federados em clubes profissionais (iniciado), franquearam relatos e experiências e, é com base nesse material que pontuei indagações e pretensões investigativas.

Faço uso da matriz sonho tentando aproximar, por intermédio da cultura, as fronteiras da Antropologia e da Sociologia, com o objetivo de apontar os elementos que compõe o sonho na sociedade contemporânea, tendo como referência o significado e o sentido atribuído pelos jovens na busca de sucesso na profissão. Essa perspectiva me impôs outros caminhos teóricos que superassem os conceitos de ideologia e de alienação, mas que permanecesse em questionamentos dialéticos, o que implicou, também, no esforço de estabelecer diálogos com o conceito subjetividade.


A Constituição do Sonho na Sociedade Contemporânea

Nos últimos anos a mídia tem, em diversas frentes (comércio, marketing, marca de um produto, compra e venda de bens, moda, estilo ou modo de vida, estética corporal etc), demarcado a idéia de que o sonho, enquanto projeto de vida, expectativa de futuro ou conquista deve ser, persistentemente, realizável. Não desprezo o sonho, como instância de vida e de esperança, pois ele encontra-se na esfera das possibilidades. O que proponho é explicitar um de seus aspectos de pouco visibilidade: a ilusão e a frustração.

No caso do iniciante-iniciado, esse movimento norteador de ações de inserção à vida prática não se difere. Há uma busca que ultrapassa os limites do jogo e desconsidera a ilusão e a frustração, uma vez que o mundo do futebol promoveu, por intermédio da mídia, uma separação entre a realidade e as dificuldades de concretização de uma correira bem sucedida. Esse sonho precisa ser uma ficção, dotada de significados, símbolos e sentidos, bem como para se distanciar da realidade social presente na estruturação do futebol para permitir o seu próprio existir.

De que aspecto do sonho trato? Trato do sonho na sociedade contemporânea e faço uso de alguns aspectos teóricos demarcados por Marc Augé (1998) no livro “A Guerra dos Sonhos”. Ele aborda o sonho inconsciente da representação social presente no imaginário individual e coletivo, diante de determinados símbolos inventados ou constituídos, em determinada lógica religiosa, de comunicação e tecnológica. Na realidade este autor elabora um trajeto antropo-histórico sobre o sonho e se prepara, de alguma forma, para refletir os mundos contemporâneos3.

Da leitura de Marc Augé interessou o modo como investiga o sonho. Buscou apontar o significado da Televisão, da imagem e do ficcional nas formas de comunicação social na vida das pessoas, sempre a partir da cultura e do simbólico. Entende que as culturas e o simbólico “[...] nunca caem do céu, que as relações entre humanos sempre foram produto de uma história, de lutas, de relações de força [...]” (Augé, 1998, p. 12). É desse sonho que trato, especificamente do sonho mediado pela cultura e pelo simbólico que produz significado e sentido, irresistivelmente reinventado nas relações de forças travadas pelas novas tecnologias, nas formas de comunicação, no social, no econômico, enfim, nas tendências de nosso tempo que orientam a expectativa de determinados grupos.

Há, segundo esse autor, um deslocamento radical das categorias Imaginário Individual-sonho, Imaginário Coletivo-mito e Ficção-literatura/arte que modificam também, de forma radical, o sentido dessas categorias; no entanto, seu resultado no social e na prática ainda é de difícil identificação. Como hipótese, aponta que essa confusão de sentidos tenha tido influência da tecnologia, da aceleração da história (tempo) e da planetarização de certos problemas. Perceber essas transformações, dentro dos limites da interpretação de Marc Augé, significa dar sentido social ao símbolo ou fazer com que o símbolo seja simbolizado ou representado, em outros termos: identificado.

Nessa linha, ao entender cultura como um vínculo social coletivamente pensável, simbolizado e instituído aparece na contemporaneidade uma fragilização dos vínculos constituídos na experiência, na criação histórica e nas possibilidades ritualísticas emancipatórias, traduzindo-se em um campo aberto para violências explícitas, implícitas e simbólicas, ou seja: “[...] quando se produz um bloqueio ritual, déficit simbólico, há um enfraquecimento das mediações [...] e aparecem os sinais de violência” (Augé, 1998, p. 22).

Ao considerar o olhar de Marc Augé sobre o mundo contemporâneo ou a supermodernidade, digo que “[...] as novas técnicas de comunicação e da imagem tornam a relação com o outro cada vez mais abstrata [...]. Assim, a substituição das mediações pelos meios de comunicação contém em si uma possibilidade de violência” (1998, p. 22).

O que esse argumento teórico implica, quanto às preocupações deste trabalho? A substituição das mediações tradicionais da cultura, nos moldes pensados por Marc Augé, interfere no universo do sonho, da projeção do futuro e as imagens produzidas pela tecnologia, marketing e mídia passam a influenciar a constituição do imaginário individual e coletivo. Como conseqüência possível, se considerar a cultura e a identidade como construções, processos ou constituições dadas no coletivo pela experiência e pelo social, ressalto que na contemporaneidade os meios de comunicação substituíram as mediações clássicas, e as referências do social, da experiência, se individualizam.

Levado ao extremo as proposições de Marc Augé, a busca pela carreira de jogador profissional só ganha sentido quando desconectada com a realidade da vida e das relações travadas no interior da instituição futebol, ou seja: uma ficção. Essa afirmação se fortalece porque a contemporaneidade é dotada de movimentos de ficção (Marc Augé, 1998, p. 104), uma espécie de demarcação dos sentidos pela imagem midiatizada, cuja relação é direta, pessoal, literalmente “incorporada” e “simbólica”, na medida em que todos se reconhecem na mesma imagem.

No caso, substituo a nomenclatura desse processo de ficcionalização por espetacularização, pois as projeções, as expectativas e os sonhos são balizados pelas dinâmicas de espetacularização promovidas da mídia. Esse movimento faz com que as relações no social e na cultura transformam-se em acontecimentos de satisfação de todos os desejos que a própria mídia fomenta, em direções de pouca realidade.

É importante sonhar, tendo em vista que o sonho pode libertar, é carregado de representações sociais e é, antes de tudo, a possibilidade da realização dos desejos, das projeções e das expectativas. Com referência a Marc Augé (1998, p. 60), digo que o sonho singular, sob suas diferentes formas, talvez seja uma das formas com a qual se alimenta o mito coletivo. O complicador, quando se reflete sobre o sonhos, projeções e expectativas de ser jogador de futebol, é que, na contemporaneidade, a imaginação social da juventude se constitui mediada pelos mecanismos sutis e complexos da mídia, do marketing, da tecnologia, do capital e do consumo.

Esse conjunto de mecanismos remete esta reflexão ao entendimento do que venha a ser subjetividade, enquanto um elemento de compreensão do sonho. Como não lancei mão da dialética, enquanto traçado metodológico para análise do sonho no contexto da sociedade contemporânea, contextualizo a subjetividade, em seu sentido negativo, o que muitos poderiam chamar de “não subjetividade”4. Portanto, abordo a temática do sonho com a necessidade de questionar sobre as novas formas de subjetividades na sociedade contemporânea.

Tal necessidade, na medida em que aprofundei leituras e análises, passou a ganhar força, pois não daria para pensar o ideológico, o simbólico, o social, o cultural sem inserir a questão da subjetividade presente nos mundos contemporâneos, uma vez que trato, pretensão ou não, de inovações sociais que estão circulando na esfera do social e que nem sempre estão incorporadas pelo indivíduo, pelos grupos, movimentos, classes e instituições sociais.

Cabe mencionar que discuto subjetividade coletiva, enquanto instância de circulação de uma série de determinações, valores, costumes, crenças, leis, códigos, sinais ainda de pouca visibilidade ou desconhecidos, sob a orientação de teorias sociológicas. Então, em quais aspectos demarco o que chamo de subjetividade? Para a compreensão desse questionamento estabeleço diálogos com determinados autores que transitam nas ciências sociais e psicologia social.

No diálogo com Renato Mezan (1997, p. 13) se observa que o sujeito se encontra no cruzamento de várias linhas de força e que é capaz de determinar algumas, enquanto outras o determinam. Isso significa que se pode mudar a direção da leitura da subjetividade no contexto contemporâneo: ela não é mais do “eu” para o mundo, as denominadas operações clássicas de entendimento da subjetividade (Cf. Guattari, 1992), mas do mundo para o “eu”.

A subjetividade não se dá em um vazio ou no nada e nem sempre se tem no seu domínio o ideológico. Na dimensão sociocultural é que se estabelecem as condições de seu surgimento. As escolhas, os modelos, os modos de ser, sentir, estar e ver o mundo, os estilos de vida, os objetos de desejos, as projeções, os projetos pessoais, os sonhos e as expectativas ocorrem na esfera da experiência, da criação e da criatividade histórica e das possibilidades ritualísticas, cujas inclinações são resultantes da individualização exacerbada, de caráter “não-emancipatórias”.

Quanto ao conceito de subjetividade formulado por Félix Guattari5, fica evidente que as tensões indivíduo-coletivo e a forma de identificação que o indivíduo tem com os símbolos e códigos são produzidos em instâncias externas. No caso, as tensões determinadas pelas novas formas organizativas do esporte, das intenções da mídia, da indústria e do marketing esportivo dão o formato à necessidade de interiorização desses símbolos e códigos.

Nessa interiorização, diante dos relatos dos entrevistados, que se incorpora projeções, expectativas e sonhos com a carreira esportiva, manifestadas como impulsos e desejos, traduzidos, muitas vezes, numa busca cega e surda que supera a conscientização da realidade explicitada na experiência vivida pelo iniciante-iniciado. Esse escopo teórico aproxima os universos do futebol, da cultura e da realidade social.

Aponto que estabeleci como marco de partida três fatores sociais, atrelando-os à cultura: as dimensões do político, do econômico e do simbólico.

No campo político-cultural, nos moldes da sociedade de massa, digo que o iniciante-iniciado se configura como um objeto, parte do evento esportivo, de pouca expressão. A “coisa”, o jogador de futebol, agrega determinado valor econômico na exposição que passa a ter na mídia, mas não implica em realização na carreira escolhida. Essa exposição, impulsionada por um modo empresarial de gerenciamento, impõe disciplinas, hierarquias, obediências ao corpo, criando instâncias de poder que remetem às padronizações de comportamentos aceitos no mundo do esporte, difundidos pelos modelos de excelência na formação do atleta, orientados por uma determinada “modernização” administrativa evidenciada.

No campo econômico-cultural, o futebol aparenta ser uma espécie de revitalização do mercado. Nessa instância, amplia e organiza os espaços de lazer dos filhos da classe média, e os clubes ganham roupagens empresariais6 e investimentos em marketing esportivo. Essas transformações reinventam o processo de formação, seleção, agenciamento e captação de atletas de alto nível. Hoje, faz sentido enxergar o futebol profissional como um “lugar” de produções de consumo.

No campo do simbólico, aparece uma re-significação da referência do processo de formação do jogador que estabelece novos códigos, recursos práticos (ritos) e simbólicos (mitos). Os espaços de aprendizado do jogo (rua, terrenos baldios, várzea, praias etc.) são cada vez menores e há um processo de substituição desses espaços por organizações empresariais , fomentadoras de novos símbolos e práticas em torno do futebol que se manifesta como instituição dotada de autoridade pedagógica capaz de inculcar, nos jovens, arbitrários culturais, enquanto instância de difusão de um certo “capital cultural“ (Bourdieu, 1998: p. 168-169). Na prática, detém a produção e a reprodução de bens culturais, legitimando formas de violência simbólica de pouca visibilidade aos olhos dos iniciantes-iniciados e dos envolvidos.

Na contemporaneidade esses fatores sociais, vinculados as tendências do futebol profissional, deixam de agregar pretensões para além da lógica do consumo. Se considerarmos o futebol como um valor estruturante das expectativas e do projeto de vida de milhares de jovens, pode se dizer que ele passa a ser idealizado como instrumento de realização pessoal e de participação social.

Na trilha do sonho do iniciante-iniciado afirmo que a sua projeção não é (ou não mais é) explicável somente no plano racional, do objetivável e do concreto. As experiências projetáveis pelo sonho circulam, cada vez mais, nas fronteiras das emoções, na dimensão subjetiva do processo de socialização.

Chega-se ao resultado do processo de interiorização dos valores culturais, à constituição do imaginário dos jovens e a elaboração de seus projetos de vida em torno do futebol, na atualidade, em que o sonho se transforma numa busca irreal, muitas vezes violenta, mas que captura elementos de projeções pessoais implicados com a mídia, o marketing e a tecnologia.

Por intermédio dos relatos dos sujeitos pesquisados passo a revelar a influência do sonho na constituição das projeções, das expectativas e das idealizações internalizados pelos jovens inscritos nesse processo, sempre cotejados e contextualizados com as repercussões e interferências das tendências presentes na contemporaneidade, especialmente no âmbito do sonho e da subjetividade, espaços possíveis de atualização e decodificação das dimensões e dos contornos socioculturais constitutivos da atual realidade brasileira e mundial.


Juventude e Futebol: as revelações do sonho

Na experiência concreta do sonho pelo iniciante-iniciado é que se pode dimensionar a intensidade do sacrifício imposto à juventude inscrita, mesmo que a escrituração dessas experiências esfrie a emoção das entrevistas e a intensidade dos relatos. E, no plano do social, não se tem a idéia correta do esforço que um jovem trava para chegar a um lugar que não se sabe onde fica.

Um atleta deve compreender um conjunto de atitudes que se vincula às exigências do jogo, mas ela não garante a realização do sonho. SAA7 demonstra como um iniciante deve se comportar:

Ser um jogador de futebol não é uma caminhada fácil. Não é não. [...] não é tão simples! Ele vê na televisão o cara com um carro bonito, o cara com uma garota bonita, o cara com casa, mas só que para ele chegar nesse estágio ele tem que trabalhar muito, ele tem que ser sério, que ser determinado em setores diversos, na parte física, na parte técnica, na parte social, na parte relacional com os jogadores e com o clube. Tem que ser bastante aplicado, ter vontade de vencer, não sentir saudades da família, dar sorte, enfim, não é só o futebol.

Entender a disciplina e as regras estabelecidas nesse universo de relações passa pela persistência. Significa acatar as ordens resultantes da natureza e dos interesses que cercam o jogo. Além desses entendimentos, o iniciante-iniciado “aceita” privações importantes à idade e à vida social. Mesmo com todas as dificuldades que essa busca apresenta aos jovens, eles se arriscam nessa caminhada. MS8 ao relatar sua experiência evidencia as tensões desse processo:

[...] na época do Palinha, treinador do Corinthians, fui emprestado para o Rio Branco de Andradas e depois voltei e fui para o São Bento de Sorocaba. Voltei e fui para o Ferroviário de Fortaleza e sempre que eu voltava era um técnico diferente, uma comissão, um presidente diferente. [...] Depois estive também no E.C. Taubaté, no Jacareí, pela 2a divisão. No Jacareí foi uma experiência também positiva, na questão de você dar valor para uma série de coisas, porque é muito difícil estar em times da 2a divisão, pois não tem nada, não tem material e você tem que se virar sozinho com uma série de coisas. A partir daí eu fui para o México e joguei na 2a divisão, na equipe de Qualtuba, que fica a 150km da cidade do México. Fiquei lá por 6 meses e depois fui para El Salvador, no time do Atlético Marti, onde o treinador era o técnico da Seleção Salvadorenha, e ele até queria que eu me naturalizasse salvadorenho para poder jogar na Seleção dele [...]. Para encerrar, eu fui para o Peru, onde joguei na União Minas, que é o time da cidade de Serra de Páscoa, uma cidade mineira [...], encerrei minha carreira lá, em 1996. [...] Vários fatores me levaram a parar de jogar, eu estava numa idade crítica. Na época, 28 anos mais ou menos, eu não tinha tanta expressão, tanta expressão na mídia, porque tinha saído do país e ninguém mais me conhecia aqui, e lá fora a gente não ganha muito, principalmente nesses países sul-americanos onde eu passei. A gente não ganha tão bem assim, porque inclui passagem de avião, uma série de coisas que não dá para você guardar um dinheiro [...]. Então, nos aspectos financeiros já não estava compensando mais e já tinha ficado muito tempo longe de casa. Você fica 6 meses longe da família e isso também contribuiu bastante, e o pessoal lá fora não te respeitam muito.

Desse ponto é que faço considerações sobre o que os entrevistados chamam de sonhos. Os jovens enfrentam momentos de tensões, limitações e decepções. A idade é fator preponderante para começar ou interromper a carreira. Disputar campeonatos sem a presença da mídia equivale ao desconhecimento, ao anonimato e à ausência de reconhecimento. A inexpressividade da carreira impõe um viver nômade ao jogador, resumidos em curtos contratos de trabalho, em deslocamentos para cidades diferentes e baixos salários. Essa realidade se encontra distante das idealizações projetadas no sonho.

Há uma realidade ignorada pelos iniciantes e o sacrifício é maior do que a satisfação, para muitos, o que não implica em ausência de satisfação e prazer. Pois bem: em quais significados contemplados no relato dos entrevistados dão sentido ao sonho de ser jogador de futebol profissional? Identifiquei: a persistência, o reconhecimento, o econômico, a relação com o universo feminino e a projeção midiática do jogador bem sucedido.

A persistência, no sentido de ser perseverante na busca, é requisito essencial, uma vez que o investimento pessoal deve ser intenso:

[...] foram vários anos de minha adolescência e de minha juventude. Hoje em dia não sei se faria de novo ou não, mas a gente deixa de estudar, isso que é um fator principal [...]. Hoje em dia eu vejo que eu perdi muito tempo dedicando grande parte de minha adolescência e de minha juventude numa coisa que a gente não ia ter a certeza que iria dar certo ou não. (MS)

O iniciante-iniciado passa parte importe de sua formação e vida gravitando em torno do futebol, com dedicações que tomam boa parte de sua juventude e de inserção à vida adulta, ou seja: o futebol impõe certas regras, comportamentos e estilos que delimitam a “consciência funcional” daqueles que querem vencer no mundo da bola. Para MS:

[...] foi muito tempo de investimento e acho que a melhor parte de minha vida, a adolescência, doei ao futebol, apesar de ser jovem e ter 32 anos, apenas. Dei a minha juventude, dos 15 até 30 anos, foi investida muita coisa e, em certo aspecto, a carreira não deu certo; não quero dizer que eu não ganhei, ganhei sim, ganhei experiência de vida, conheci culturas diferentes, mas aquele investimento que eu tive, aquela seriedade que eu tive em torno do futebol, não serviu para nada, eu não consegui conquistar, eu acho, 1/3 daquilo que eu sonhava. Então foi frustrante mesmo [...].

Aceitar o fim significa abandonar a apropriação imaginária e simbólica gerada pela mágica que cerca o futebol. Significa também reconhecer o excesso de investimento e, posteriormente, o término da esperança projetada na carreira esportiva. Significa, ainda, em todos os sentidos, retornar à realidade da vida cotidiana, esquecer a fama, o dinheiro, a bajulação e, acima de tudo, o sonho.

Além da questão do investimento pessoal, da persistência, a busca impõe a necessidade de pesados investimentos econômicos e é a família quem disponibiliza o recurso e o sustento financeiro do sonho; ela renova as forças do iniciante–iniciado em seguir tentando. HDB frisa a importância do apoio de sua família nessa busca:

[...] eu já sabia o que eu queria, graças a Deus. Meu pai sempre me incentivou, me apoiou muito. Minha família me dá condições, dinheiro para viajar, fazer testes, ir para outros clubes, pois é isso ai que eu queria, graças a Deus! Deus me deu talento e eu aprimorei e tenho certeza que vou ser jogador de futebol.

Na comemoração dos gols, nas entrevistas e nas manifestações públicas é incomum ver um jogador mandando beijos, abraços, lembranças, felicitações ou agradecimentos à família. Em alguns casos, pode-se imaginar o quanto de sacrifício a família fez (ou faz) para sustentar o sonho do filho.

Na contrapartida, aposta no reconhecimento social de seu trabalho. No campo do social, a visibilidade impõe um reconhecimento. Aqui empresto as sugestões de Todorov (1996, p. 89), para apontar que o reconhecimento determina a ação e a entrada do indivíduo na existência, especificamente humana. Implica, num campo mais alargado de relações, aceitar que o reconhecimento está presente em todas as outras ações e no mundo do futebol esse movimento é cada vez mais acentuado.
O reconhecimento da imprensa, torcedores e diretores é importante, mas que nada, pois dá à gente um orgulho pessoal. A gente passa a pensar: - ‘eu não sou tão mal como eu pensava’ ou ‘que sou capaz de fazer algumas coisas’. É isso que nos dá um pouco mais de vontade para seguir com isto, para seguir com outras coisas, pois existem pessoas que nos vêem e sabem que posso fazer algo. (MS)

Atrelado à idéia reconhecimento perpassa a dimensão econômica do sonho. Hoje o esporte de alto rendimento se traduz como uma possibilidade profissional, cuja profissão desperta o interesse de muitos pelo seu potencial de ganho econômico. Mas, poucos têm acesso às vantagens do topo da carreira e sabe-se que os clubes brasileiros pagam até dois salários mínimos para 82,17% dos atletas e só 3,75% dos atletas profissionais recebem mais de R$ 3.600,00. Esses dados são de 2002 e servem de referência, ainda hoje, sobre a realidade do futebol brasileiro9.

Embora haja discrepância entre a imaginação social e a realidade, a sedução que o mundo econômico pode proporcionar é condição de manutenção do sonho, pois essa trajetória, no caso brasileiro, constitui a necessidade de ser bem sucedido na carreira10. O iniciante-iniciado inscreve-se no processo acreditando que vai melhorar a sua condição de vida e de todos que o cercam. Esse é um dos aspectos da projeção de HDB:

O meu sonho é vencer na carreira [...], como jogador profissional e chegar até um clube de expressão como Corinthians (fala do Sport Clube Corinthians Paulista de São Paulo) e realmente realizar meu trabalho, ser determinado. Para mim, alcançar sucesso, fama e chegar até a seleção brasileira e ajudar os meus familiares e a mim mesmo.

Esse relato permite desdobramentos sobre as projeções em torno do sonho. Aparecem idéias chaves que sustentam o movimento da busca: sobrevivência, realização pessoal, disciplina e respeito às regras do jogo, fama, reconhecimento, pertencimento e proteção à família. É certo que os iniciantes-iniciados criam suas expectativas nessas matrizes.

A leitura, por maior que seja a variável, esbarra nas informações circunscritas e circulantes na e pela Instituição Futebol, o que significa possibilidades de se ter felicidade, expressividade corporal, perspectiva de reconhecimento público e fama, em que o acesso ao econômico-consumo serve como elemento de sedução aos iniciantes-iniciados. Muitos jovens são induzidos ao sonho em fase da idéia de sucesso que imaginam com a carreira esportiva; tudo em virtude dos altos salários recebidos por alguns atletas e pela projeção que estes ganham na mídia. Fica evidenciado nas projeções de VH:

[...] Essa é a vida que eu quero ter, ser jogador bem remunerado, ter vida boa, conhecer praticamente o mundo inteiro em função do futebol, estar sempre na mídia, todo mundo falando. Acho que todo mundo quer uma vida assim e procura ter uma vida desse jeito. [...] eu acho que eu ia gostar dessa vida, mulheres, dinheiro. Também, nossa! Mulheres, dinheiro, carro, viagens, tudo.

Via de regra, os benefícios da carreira profissional bem sucedida implica em badalações, conseqüentemente em acesso ao universo feminino, modelos, boates, carrões, entre outras coisas. Esse acesso tem respaldo na projeção midiática do jogador bem sucedido, o que na imaginação do senso comum se traduz como: “jogador de futebol profissional é igual a galã” ou “pessoa de vida glamourosa”. A projeção do jogador sofre forte influência da televisão e do marketing que cerca o jogo. Nesse sentido, a mídia colabora para que o futebol seja incorporado pela imaginação do iniciante-iniciado e presta-se em difundir as identificações do iniciante com esse ou aquele atleta.

Eu assisto futebol na TV, com certeza! [...] Eu vejo, assim, mais, os jogos importantes, os clássicos com os times grandes, a Seleção Brasileira e os times internacionais. [...]. (HDB)

Ao se refletir sobre a constituição da imaginação social por intermédio da tecnologia midiática pode-se dizer que nunca foi tão forte a influência dos sistemas tecnológicos de comunicação no modo de vida de pessoas e grupos sociais; o que acontece lá ou aqui é transmitido simultaneamente, em tempo real. Implica sobremaneira em aproximação, reprodução, assimilação e rejeição de práticas ou manifestações. Esse movimento deu ao futebol proporções novas quando passa a assumir o epicentro do lazer mundial, quase sempre vinculado às novas práticas de consumo.

Não dá para realizar qualquer questionamento sobre o universo da imaginação social, da constituição do senso comum e da vida cotidiana sem ter como ponto de partida as pautas informativas das mídias, uma vez que as manifestações culturais também são alimentadas por esse modo de comunicação social.

Em outros termos, o sonho é, inclusive, impulsionado pela imagem e pela constituição da imaginação social, cuja forma, a força da imagem que os “Ronaldo’s”, “Kaka’s”, “Romário’s” exercem na imaginação do iniciante-iniciado é definitiva para a manutenção dessas buscas. Essa força exerce, inclusive, a influência em dissimular a realidade e difundir um suposto glamour da profissão, mesmo diante de realidade adversa. No relato de MS esse aspecto ressalta:

No começo eu senti muita dificuldade, é uma vida totalmente paralela, porque você fica no meio do esporte, no caso o futebol, e só tem aquilo na sua cabeça. Então, o seu dia-a-dia é acordar e treinar. Você pode até ir para uma escola, no caso eu estava fazendo na época colegial, mas é treinar, melhorar aquilo que você está fazendo [...] e eu só vivia futebol. Digo que nós assistíamos programas de TV que falavam, somente, sobre futebol e não se tínhamos consciência do mundo. Para gente não importava também o que vinha de fora, os acontecimentos do mundo lá fora e, por exemplo, questões sobre cidadania, sobre direitos do outro, sobre política ou economia. Isso para gente não interessava [...].

Os sistemas de comunicação, de marketing e de constituição da imagem de atletas contribuem para interiorizar no iniciante-iniciado o sonho pela carreira e a televisão, nesse universo, adquire uma importância extraordinária na vida da juventude inscrita. A imagem ganha peso e influência na projeção dos sonhos do que os jogos e as brincadeiras de rua, por exemplo. E, a sociedade, circunscrita ao entretenimento e às estruturas atuais de comunicação, reforça a idéia de que a visibilidade midiática é mais significativa nesse processo. Portanto, atraídos pela força dessa possibilidade, os iniciantes-iniciados projetam e estruturam seus sonhos, suas identificações, suas expectativas de futuro, e constituem seus estilos de vida.

Considerações Finais

Tentei apreender o significado e o sentido do sonho produzido pelo futebol. Esse esforço permitiu a compreensão de aspectos sobre o espírito de nosso tempo social e suas configurações imbricadas nas relações instituição futebol-sociedade. Permitiu, ainda, explicitar as entradas formais e informais que esse esporte faz uso para “apaixonar”, indistintamente, muitas pessoas.

A magia do futebol, potencializado pelos mecanismos da sedução midiática, pode prorrogar o entendimento das dificuldades presentes na busca da realização do sonho do iniciante-iniciado, tudo em fase do distanciamento que promove da realidade social.

De acordo com a experiência de cada um, essas dificuldades se aplicam para todos, em maior ou menor grau, mesmo para aqueles que não tiveram a chance de uma carreira mais prolongada. Há uma consistente internalização da dimensão simbólica circunscrita ao universo do futebol que inviabiliza o abandono e o despertar do sonho, o que, por sua vez, serve como uma barreira para que o iniciante-iniciado encare a realidade e o fim do sonho.

Plausível, no que diz respeito à manutenção e permanência do vínculo, que o jovem acata a persistência, o reconhecimento, o econômico, a relação com o universo feminino e a projeção midiática do jogador bem sucedido como marcas indispensáveis ao sucesso de sua projeção e sonho. Nessa assimilação ele se mantém ligado ao futebol e tem uma reduzida consciência de que a passagem do sonho à realidade tem forte grau de implicações e imposições.

Essa discussão só ganha sentido no contexto da contemporaneidade, momento em que as racionalidades da modernidade, a certeza e a objetividade, abrem espaços às incertezas e à valorização de elementos da subjetividade (sonho, medo, sentimento, emoções)11 aprisionados em uma sociedade funcional. A criatividade, o sonho, as projeções e o futuro se transformam em mercadoria-consumo-marca, repletos de implicações simbólicas, as quais atribuem significado e sentido às expectativas de futuro dos jovens inscritos no universo do futebol. Portanto, na atualidade, não dá para conceber a equação futebol-sonho sem a contribuição imaginária produzida pela mídia, representada por um conjunto de idéias, códigos e valores que extrapolam o mundo do futebol e se afeiçoam às tendências tecnológicas e informacionais em evidência.


Referências Bibliográficas

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BOURDIEU, Pierre (1998). O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

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IANNI, Octávio (2003). “O Príncipe Eletrônico”. In: DOWBOR, Ladislau [et al]. Desafios da Comunicação. 2 ed. Petrópolis, RJ, Vozes, p. 62-76.

MEZAN, Renato (1997). “Subjetividades Contemporâneas?”. In: Subjetividades Contemporâneas (Conferências). São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, ano 1, nº 1, p. 12-17.

PIMENTA, Carlos Alberto Máximo (2006). Sociologia da Juventude: futebol, paixão, sonho, frustração, violência. Taubaté, SP, Cabral Editora.

TODOROV, Tzvetan (1996). A vida em comum: ensaio de antropologia geral. Campinas, SP, Papirus.

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1 - A questão do sonho na sociedade contemporânea pode ser ampliada na medida em que relacionamos sociedade–consumo, modernidade-pós-modernidade e as tendências encaminhadas pelo sistema produtivo. Esta reflexão tem seu limite nas relações produzidas no mundo do futebol.

2 - Por questões éticas citarei no decorrer do texto apenas as iniciais dos nomes dos entrevistados.


3 - Há complementações dessa questão quando Marc Augé pensa a contemporaneidade nos textos “Não–lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade” (1994) e “Por uma Antropologia dos Mundos Contemporâneos” (1997). Contudo, este trabalho se circunscreve ao livro “A Guerra dos Sonhos”.

4 - O sonho e a subjetividade aparecem, em parte da literatura utilizada, como manifestações positivas, instâncias reveladores de possibilidades e de micro-revoluções, sendo esta a interpretação que Márcia Regina da Costa (1999) fez de Félix Guattari (1981), no texto “A Violência Urbana é Particularidade da Sociedade Brasileira?”, quando tratou das micro-revoluções travadas por grupos juvenis. Essa discussão é ampliada por Márcia Regina da Costa (1993) na pesquisa que realizou com os “Carecas do Subúrbio”, grupo juvenil de tendência nazi-facista existente no ABC paulista. Aqui empreendo uma inversão desses aspectos e trato de negativar as novas subjetividades, pois trabalho elementos como a frustração, o insucesso e o fracasso, dentro de uma certa conformação social.

5 - Cf. Pimenta (2006, p. 15).


6 - Para aprofundamentos ver Pimenta, “Op. Cit.”.

7 - SAA, ex-jogador profissional, professor em uma escolinha de futebol. Concedeu a entrevista no ano de 2000.

8 - MS foi um dos principais entrevistas desta pesquisa, juntamente com VH e HDB. Esses registros foram realizados no ano de 2000.

9 - Informações obtidas no site do CEV - Marketing Esportivo. Acesso em 10.02.2008 nohttp://listas.cev.org.br/arquivos/html/cevmkt/2002-02/msg00011.html.

10 - Não estou discutindo a origem socioeconômica do jovem, iniciante-iniciado, uma vez que esse fator é uma das condições na busca pelo sonho.

11 - Daí, porque, arrisquei falar de sonho e subjetividade, embora reconheça que essa temática mereça aprofundamentos.


*Nota: o original deste texto foi publicado na revista Ponto e Vírgula da PUC/SP, no 3° trimestre de 2008. Para acessar - http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n3/pdf/12-pv3-carlos.pdf

**Carlos Alberto Máximo Pimenta é Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP. Atualmente é professor-pesquisador do GEPE-Humanas, no IEPG da Universidade Federal de Itajubá. Autor de diversos livros sobre relações sociais e futebol. Recentemente lançou “Antropologia Urbana: diálogos com Márcia Regina da Costa”. Porto Alegre, Armazém Digital, 2009.

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Benê Lima