Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

segunda-feira, dezembro 27, 2010

Clodoaldo Gonçalves Leme, mestre em Ciências da Religião e doutorando em Psicologia Social

Especialista em religiosidade fala de conquista da individualidade e da ascensão social pelo futebol
Bruno Camarão

O esporte, de maneira geral, possui uma série de dinâmicas inerentes, entre as quais se destacam as interações entre os próprios atletas, os jogos e as regras específicas. Ele pode ser destacado como uma maneira interessante para figurar processos de individualização e socialização pensados simultânea e articuladamente, já que ambos são estruturados pela linguagem e são capazes de individualizar e tornar comum ao meio social esse sujeito.

No Brasil, especificamente, o sentimento arraigado com as modalidades esportivas coletivas e o convívio com a bola, os valores culturais internalizados desde a infância e que prosseguem com o indivíduo ao longo de sua vida, têm o poder de aproximar as pessoas, estimular o diálogo, a troca de experiências e informações – um ambiente fértil para o desenvolvimento humano e para a formação das identidades psicossociais. Doutorando nessa área e mestre em Ciências da Religião, Clodoaldo Gonçalves Leme se aprofunda na abordagem do futebol.

Graduado em Educação Física pela Escola Superior de Educação Física de Jundiaí (1999), com especialização em Treinamento Esportivo e Fitness (2001) pela mesma instituição, ele possui mais de uma década de experiência com estudos na área, desenvolvendo principalmente desenvolve principalmente os temas: futebol, religião, religiosidade, sociedade de risco, sociedade do espetáculo, identidade social, emprego e desemprego.

Na avaliação de Clodoaldo, o indivíduo não nasce membro da sociedade, mas sim com a predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade à medida que consegue internalizar e compreender seus semelhantes, apreendendo o mundo como realidade social dotada de sentido. “Pode-se inferir que esse fator sócio cultural, de certa forma, acaba viabilizando a sobrevivência das equipes de futebol em nosso país, que são fortalecidas pelo desejo de aproximação de neófitos que, costumeiramente, optam por um clube, seja como atleta (profissional ou amador) ou torcedor”, disse, nesta entrevista à Universidade do Futebol.

Ele destaca em sua tese que os riscos no “mundo da bola” são flutuantes na vida dos indivíduos, ou seja, mudam de acordo com as circunstâncias de vida e têm diferentes repercussões, dependendo do repertório de cada um. Em virtude disso, não é possível fazer inferências do tipo causa-efeito, com um raciocínio linear, quando se trata dos riscos no futebol.

“É preciso identificar que processos ou mecanismos influenciaram o que liga risco à consequência em um determinado ponto da história do indivíduo”, aponta Clodoaldo, que entrevistou alguns desses personagens com histórias de vida protagonizadas pela perda do emprego – ou seja, a saída do futebol profissional -, e como isso colocou os sujeitos em situações de risco.

A identificação é que estes ex-atletas precoces são os mais expostos aos riscos, pois foram privados de uma educação familiar e escolar mais adequada. “Os que não tiveram um processo de socialização mais estruturado se percebem na corda bamba frente aos projetos futuros”, acrescenta.

Eis o sinal aos talentosos jogadores e aspirantes a craques: o equilíbrio da vida biológica, psíquica e social, está intimamente ligado à maneira de lidar com certas valências ou espaços de vida, como a profissão (carreira), a casa (família), os estudos, os investimentos de toda ordem.

“Cada um terá que, efetivamente, encontrar um justo equilíbrio entre essas valências ou espaços de vida sem deixar que nenhum deles avance excessivamente sobre os outros reduzindo-os, anulando-os e, por conseguinte, desequilibrando-se mais ou menos profunda e irremediavelmente”, afirma Clodoaldo, que ainda fala sobre sua dissertação de mestrado em Ciências da Religião, a qual trata das manifestações de religiosidade no futebol profissional paulista, além de abordar o reconhecimento dos ídolos como seres “sagrados” tendo como pano de fundo a socialização do indivíduo.

Universidade do Futebol – Na visão do senhor, de que modo o esporte – e mais precisamente o futebol – pode funcionar como um instrumento capaz de possibilitar a emancipação e a autonomia dos sujeitos?

Clodoaldo Leme – É possível afirmar que o déficit educacional que perpassa não apenas o esporte, em especial o futebol, mas toda a sociedade brasileira, colabora com o fato de as pessoas se perceberem desprotegidas, sem amparo diante da lógica capitalista, do sistema que é imposto a todos e se tornou dominante há tanto tempo que se tende a tomá-lo como “normal” ou “natural”, mesmo em suas mazelas. Num tal contexto, o espaço para os chamados “valores humanos” (tomados, de modo geral, como valores que elevam a condição pessoal do indivíduo além de sua capacidade produtiva ou de consumo) é estabelecido a partir de certas condicionantes (se ele pode, eu também posso, ou “gente que faz”, ou ainda, “querer é poder!”, são exemplos).

Salienta-se que essas situações de vida pontuais são importantes, entretanto não significa que o final feliz será alcançado pela maioria. A bem da verdade, o sucesso, o reconhecimento, os processos emancipatórios que contribuem com o desenvolvimento do indivíduo, assim como a tão falada autonomia, só serão logrados mediante um esforço extraordinário. Para tanto, emerge um projeto educacional, familiar e social, estruturado, adequado, como uma ferramenta importante no processo de socialização dos sujeitos. Frisa-se ser o esporte, o futebol, principalmente o inserido no âmbito educacional, um instrumento capaz de possibilitar a emancipação e a autonomia dos sujeitos, pois estes cidadãos/desportistas/aprendizes seriam capazes de se reconhecerem mutuamente e se auto-afirmar enquanto identidades próprias, à medida que interagem intersubjetivamente.

O esporte e suas dinâmicas inerentes (interações, jogos, regras, etc.) podem ser destacados como meio propício para figurar os processos de individualização e socialização concebidos de forma articulada e simultânea, pois ambos, estruturados pela linguagem, são capazes de individualizar e socializar o sujeito ao mesmo tempo.

Universidade do Futebol – Amparado pela psicologia social, qual é a importância da brincadeira, do jogo, e das relações interpessoais no processo de constituição das identidades humanas?

Clodoaldo Leme – Recorro ao psicólogo social, George Herbert Mead, para clarear o debate em torno da importância da brincadeira, do jogo, e das relações interpessoais, nesse processo de constituição das identidades humanas. Mead destaca a importância dos jogos infantis como um primeiro momento em que a criança irá se constituir a partir da relação com o outro, seu outro (dublê). É nos jogos e brincadeiras infantis que a criança cria seus personagens imaginários e se permite colocar em diferentes papéis sociais (torna-se médico, professora, motorista, jogador, etc.). Sendo assim, os jogos infantis têm um caráter funcional, pois cumprem o cargo de serem mediadores para a criança em relação à sua sociedade, pois permitem que elas se coloquem no lugar do outro. Os jogos que antecedem aos de regras são aqueles em que a criança brinca de alguma coisa sem se preocupar com os fins e os meios de sua atividade (play), podendo alterar rapidamente de papéis; por exemplo, a bola que era chutada, agora pode se transformar em cavalo pela criança, que sentada, sente-se cavalgando. Posteriormente, a criança continuaria seu processo de desenvolvimento ao participar do jogo com regras (game), regras estas que determinariam os padrões de comportamento dos integrantes da interação. A regra, ao ser internalizada, faz com que o indivíduo funcione por si só e que os participantes consigam atingir seus objetivos em conjunto e não mais isoladamente.

A partir especialmente da aquisição da fala é que a criança irá gradualmente dominando o processo de apropriação da atitude do outro. E o jogo com regras implica essa apropriação da atitude de todos os participantes de forma organizada, até chegar ao ponto em que todos assimilem as regras, organizando para si o outro, como um outro generalizado, tendo por referência o ponto de vista do todo integrado de sua comunidade social. Fundamental, o conceito do “outro generalizado” aparece com destaque na obra de George Mead, como elemento essencial de sua teoria do self. O autor descreve-o da seguinte forma: “a comunidade ou grupo social organizado, que proporciona ao indivíduo sua unidade do ‘self’, pode ser chamada ‘o outro generalizado’. A atitude do outro generalizado é a atitude de toda a comunidade”. Assim, por exemplo, no caso de um grupo social como o de uma equipe de futebol, a equipe é o outro generalizado, na medida em que intervém – como processo organizado ou atividade social – na experiência de qualquer um de seus membros.

Vale ressaltar que, somente na medida em que o indivíduo puder adotar as atitudes gerais de todos os outros envolvidos nos processos sociais de sua comunidade, concordando com a totalidade das relações experienciais, das instituições e grupos de seu ambiente comunitário, é que esse indivíduo poderá desenvolver um self completo. Pode-se dizer que o outro generalizado é uma espécie de influência da socialização na constituição do self, ou seja, na individuação. Identificado em crianças maiores, o jogo, como realizado no esporte, exige uma maior complexidade do self.

Compondo o quadro explicativo, aludimos ao(s) garoto(s) que se iniciaram brincando com a bola “desinteressadamente”, até terem o contato com o futebol estruturado, para, a partir daí, começarem a sonhar com a carreira de atleta de futebol profissional. Salienta-se o aspecto de considerar o prazer e o benefício físico, psíquico e social que a prática esportiva pode desencadear, mas deve-se considerar também, principalmente no caso específico do futebol, que muitos atletas iniciantes e amadores, vislumbram pela carreira esportiva a possibilidade real de ascensão social, pois o esporte de preferência nacional é tido como meio propício, principalmente para as crianças mais pobres, para buscarem minimizar problemas econômicos e suas consequências de toda ordem, pois parte da população é privada de educação de qualidade, estudos, cursos profissionalizantes, entre outros direitos, que lhes são suprimidos por falta de vontade política.




Mead aponta que é nos jogos e brincadeiras infantis que a criança cria seus personagens imaginários e se permite colocar em diferentes papéis sociais 

 

Universidade do Futebol – Walter Benjamin diz que o grande equívoco em relação aos brinquedos fabricados é o fato de que estes são sempre pensados como produções para as crianças e não como criações das crianças. Os brinquedos, atualmente industrializados e produzidos em séries, limitam a criatividade das crianças, mesmo quando estas não são totalmente servis a eles? E de que modo isso pode se refletir na formação do jogador de futebol?

Clodoaldo Leme – Em primeiro lugar, pondera-se que, diferentemente de outras áreas de atuação, o futebol parece denotar situações que fogem de um padrão convencional, quando se refere à escolha da carreira profissional. Basta lembrar que quando a maioria das crianças nasce, além de receber o nome, recebe também do pai ou de outra pessoa próxima da família e influente no meio, um time que, provavelmente, irá lhe acompanhar pelo resto da vida – são poucos os que mudam de agremiação; como diz o ditado: brasileiro troca de mulher, mas não troca de time. Mesmo quando a equipe passa por momentos difíceis, por uma “draga danada”, os torcedores não o abandonam. “Até a pé nos iremos. Para o que der e vier (...)” diz o hino do Grêmio; “(...) Sofro por ti Corinthians (...)”, canta uma das maiores torcidas brasileiras; e assim por diante.

Interessante salientar que junto com as formas de vida, dentro das quais nascemos e que cunharam nossa identidade, como descreve Habermas, “assumimos modos inteiramente diferentes de uma responsabilidade histórica, uma vez que depende de nós o modo como continuamos as tradições nas quais nos encontramos previamente”. É bem da verdade, quem tem o futebol permeando a sua socialização, dificilmente se solta dessa teia no decorrer de sua história; em menor ou maior intensidade, ele será referência em sua vida.

E como o futebol também é apresentado às crianças? Pelo brinquedo denominado bola! Pode ser de borracha, couro, papel ou meia, ela constantemente está nas garras da “molecada”, ao lado da cama, no jardim ou na garagem. É muito difícil encontrar alguém que nunca tenha brincado com uma; se não brincou, no mínimo foi vítima de algum “pé torto” que estava por aí dando os seus chutinhos e, de quebra, acertou uma bela bolada no desatencioso que estava andando sem reparar que havia uma “pelada” ali por perto e que ainda teve que ouvir um sonoro: “desculpa aí, tio, tá dormindo”.

Em nosso país, a paixão pelo esporte e o convívio com a bola, valores culturais internalizados desde a infância e que prosseguem com o indivíduo ao longo de sua vida, têm o poder de aproximar as pessoas, estimular o diálogo, a troca de experiências e informações, sendo assim, lócus propício para o desenvolvimento humano e para o ininterrupto processo social de formação das identidades psicossociais. Aliás, o indivíduo não nasce membro da sociedade; nasce com a predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade à medida que consegue internalizar e compreender seus semelhantes, apreendendo o mundo como realidade social dotada de sentido. Pode-se inferir que esse fator sócio cultural, de certa forma, acaba viabilizando a sobrevivência das equipes de futebol em nosso país, que são fortalecidas pelo desejo de aproximação de neófitos que, costumeiramente, optam por um clube, seja como atleta (profissional ou amador) ou torcedor.

Esse ciclo que se inicia na socialização primária das crianças, carregado de emoção e simbolismo e que as acompanha pela vida adulta é reforçado pela exposição intensa do esporte na mídia, que comumente destaca as histórias de sucesso e de superação de atletas e/ou equipes. Resultante dessa correlação entre esporte, socialização e mídia (televisão, jornais, revistas, rádio, internet etc.) são a glamorização e o magnetismo exercido pelo esporte, aludindo a ideia de um sucesso profissional consequente à prática esportiva, que viria com certa naturalidade, pois ao “nascermos” no Brasil, “todos seremos” jogadores de futebol.

Como salientado, não é necessário fazer muito esforço para perceber que, para se iniciar no futebol, não há obrigatoriedade de aquisição de materiais específicos; um papel amassado ou, até mesmo meias enroladas e costuradas servem para alegrar a brincadeira mais praticada pela garotada. No decorrer do tempo, o simples divertimento vai se transformando em algo mais organizado, com a formação de equipes, aquisição de uniformes, bolas oficiais, entre outros equipamentos que são necessários para a prática do futebol. Na rua, no terreno da esquina – que hoje, infelizmente, estão escassos -, nas escolinhas de futebol, colégios e clubes, a brincadeira vai se tornando cada vez mais importante e complexa. Entretanto, há dificuldade em perceber que nesta simples brincadeira pode haver ilusões. Quais valores são passados para a criança? Quais valores se enraízam nela?

Muito importante: na trajetória rumo ao profissionalismo, muitos atletas contam com incentivadores, entre eles, os pais e familiares, os amigos, os professores, suas próprias habilidades, e a informação, por vezes, distorcida, passada pela mídia, em que é mostrado o lado vitorioso do futebol, evidenciando a reduzida parcela dos vencedores, quando, de fato, o futebol profissional é o sonho de muitos, mas a realidade para poucos, tendo o indivíduo que passar por diversos obstáculos para chegar a brilhar dentro das “quatro linhas” e aparecer no noticiário e nas manchetes esportivas. Relembra-se que numa sociedade dominada pela produção e consumo de imagens, nenhuma parte da vida pode continuar imune à invasão do espetáculo; nem mesmo o futebol.

Por ora, sustenta-se que, partindo da brincadeira de criança, perpassando pelo momento em que a atividade é arraigada em sua vida com mais entusiasmo, até a busca pelo profissionalismo, o processo de formação da identidade do “boleiro” é contínuo, pois acredita encontrar no futebol a oportunidade de ser reconhecido socialmente. Há ilusão de que sempre é possível. No entanto, para maioria dos “seguidores”, o futebol não tem glamour.

Enfim, esclarece-se que a busca por esta carreira é grande, mas a conquista do espaço neste esporte é muita pequena. Há o êxito, mas há também muita frustração e, diante deste aspecto, pode-se dizer que os que conseguem a consagração e os que caminham à margem, terão em sua identidade “carimbada” a palavra futebol, pois a perspectiva de se tornarem grandes atletas e a busca da ascensão social via futebol, são valores internalizados desde a infância, quando a nomeação do mundo é retransmitida por seus outros significativos, como os familiares, prosseguindo com o reforço feito pela ordem sistêmica, através da mídia, por exemplo, em sua socialização, até o momento de definição ou crise identitária, quando se deparam com a (im)possibilidade real da profissionalização no futebol. Aliás, mesmo sabendo das incertezas, muitos indivíduos querem esta carreira para ele, ou, no futuro, para seu filho.

A necessidade de conquistar espaço, de ser um atleta, de ganhar dinheiro e principalmente de ser alguém reconhecido socialmente, mostra que a identidade do atleta de futebol é caracterizada pelas constantes metamorfoses. Na longa trajetória rumo ao profissionalismo, ou não, as transformações são contingentes às dificuldades encontradas nos caminhos e descaminhos do mundo da bola. Na identidade do indivíduo ficam “traços” do futebol, entretanto, a maioria não poderá “ganhar” a vida neste esporte.

Então, seria o futebol mais um canto da sereia? A ilusão de conquista da plena individualidade e ascensão social, promessa de um sistema meritocrático como o capitalista? Quais seriam as alternativas para aqueles indivíduos que buscariam um recomeço na sociedade, com outras ferramentas, que não sejam suas chuteiras? Tudo isso começa com uma “simples” brincadeira.




Há necessidade de se compreender que o futebol profissional é o sonho de muitos, mas a realidade para poucos, diz Clodoaldo 

 

Universidade do Futebol – No artigo “Considerações sobre a formação e transformação da identidade profissional do atleta de futebol no Brasil”, que você assina com Antonio da Costa Ciampa e Renato Ferreira de Souza, há uma reflexão sobre o que seria um processo de ilusão de conquista da plena individualidade e ascensão social a partir do futebol. Como você vislumbra as alternativas de recomeço na sociedade para aqueles indivíduos que não obtiveram êxito como profissionais da bola?

Clodoaldo Leme – O ritmo de vida dos atletas de futebol é simplesmente muito acelerado. Diante deste fato, não param para refletir e perguntar o porquê de tanta pressão. Poderiam utilizar melhor o tempo que ficam concentrados para tentar compreender como se dão as relações no ambiente do futebol profissional. Aliás, desde a base até o alto nível, um bom orientador poderia colaborar de maneira efetiva com a vida dos indivíduos que passam grande parte do tempo a correr nos treinos e nos jogos, que enfrentam problemas educacionais, entre outros.

Sabe-se que querer humanizar plenamente o futebol profissional é utópico, no entanto, poderiam existir mais momentos para acalmar os ritmos, para reequilibrar os sistemas físicos, neurológicos, sociais, etc., sem ser aqueles comumente utilizados (de forma enganosa) pelos atletas, acima da média ou não, como os pagodes, as bebidas, as mulheres bonitas e os carrões. Os atletas que apenas se utilizam desses recursos como forma de “viver a vida” acabam encontrando sérios problemas em sua vida pós-futebol, pois ao deixar de lado instrumentos importantes para uma vida mais equilibrada, ao se depararem com os riscos, o caminho muitas vezes é sem volta: poucos conseguem ter ferramentas adequadas para arquitetar o futuro.

Vale destacar que os riscos no “mundo da bola” são flutuantes na vida dos indivíduos, ou seja, mudam de acordo com as circunstâncias de vida e têm diferentes repercussões, dependendo do repertório de cada um. Portanto, não é possível fazer inferências do tipo causa-efeito, com um raciocínio linear, quando se trata dos riscos no futebol. É preciso identificar que processos ou mecanismos influenciaram o que liga risco à consequência em um determinado ponto da história do indivíduo. Vale destacar que em algumas entrevistas que realizei, nas histórias de vida que foram transparecidas, a perda do emprego, ou seja, a saída do futebol profissional, colocou os sujeitos em situações de risco, sendo os mais expostos aos riscos os que foram privados de uma educação familiar e escolar mais adequada. Os que não tiveram um processo de socialização mais estruturado se percebem na corda bamba frente aos projetos futuros.

É neste ponto que os craques e aspirantes a craques não devem esquecer (tem que ser lembrados) que o equilíbrio da sua vida biológica, psíquica e social, está intimamente ligado à maneira de lidar com certas valências ou espaços de vida, como a profissão (carreira), a casa (família), os estudos, os investimentos de toda ordem. Cada um terá que, efetivamente, encontrar um justo equilíbrio entre essas valências ou espaços de vida sem deixar que nenhum deles avance excessivamente sobre os outros reduzindo-os, anulando-os e, por conseguinte, desequilibrando-se mais ou menos profunda e irremediavelmente.

Efetivamente, a vida não apenas dos jogadores, mas das pessoas em geral, não pode transformar-se ou fundir-se com a sua carreira, com o seu trabalho, com a sua profissão (agitando-se constantemente), nem com a sua casa (fechando-se), nem consigo próprias (ensimesmando-se, idealizando-se), nem com os outros (divagando inteira e descontroladamente no fluxo e refluxo das relações). O processo dialógico, o processo dialético, são mecanismos que não poderão deixar de funcionar de um modo equilibrado no interior do psiquismo humano e na justeza de sua articulação identitária.

No universo do futebol, é necessário que exista o equilíbrio entre os espaços ou estilos de vida. No entanto, o que se verifica é que os jogadores estão preocupados e absorvidos excessivamente com a profissão, a carreira, o trabalho, fazendo passar o resto para segundo ou terceiro plano ou descurando-o completamente (infelizmente, para muitos não há opção: trabalhe ou trabalhe... apenas para subsistir). Acrescenta-se que o problema é muito grave no futebol, pois além de abrir mão de estudos e cursos profissionalizantes para alcançar o objetivo, os indivíduos na faixa etária dos 30 aos 35 anos de idade (uns com um pouco mais, outros com bem menos), são exclusos do meio. Examinando a situação de seu dia-a-dia, cada um poderá ver qual ou quais configurações reproduzem nos seus estilos de vida. Nos dias atuais, uma reflexão séria sobre estas realidades é indispensável para fazer o diagnóstico dos seus estados de vida e desenvolver as formas de intervenção mais adequadas para repor o equilíbrio.

Muitos dos problemas que os “sem clubes” têm e das dificuldades que afetam o seu equilíbrio e relacionamento intra e interpessoal ligam-se diretamente com as situações elencadas. É por isso, como se tem insistido, que o sistema de educação em geral e o de formação de atletas em específico não pode ser deixado de lado. Eles têm que transformar-se numa instituição “de verdade” e selecionar com mais propriedade os conteúdos das distintas temáticas dos planos de estudos e de formação (há poucos meses, o Barcelona anunciou que o departamento que coordena as equipes inferiores passava a se chamar futebol de formação e não mais futebol de base. “Parece uma mudança boba, mas não é. Queremos formar homens aqui, não só jogadores. São poucos os que conseguirão, realmente, triunfar no futebol”, afirmou Guillermo Amor, diretor das divisões de base do clube. Para isso, o clube paga as despesas nos estudos de todos os atletas, de 7 a 21 anos. Até mesmo a presença de empresários no CT do Barcelona é controlada. “Orientamos as famílias a tratarem diretamente conosco. Pelos menos até os 16 anos, quando se inicia realmente a carreira profissional”, disse o dirigente.).

Para tanto, a qualidade e a atualidade das informações são cruciais. Lembra-se que há um bombardeio constante de informações, não só de níveis muito discutíveis, mas até com frequência, falsas e contraditórias, com o agravante de iludir não apenas os que almejam a carreira de atleta de futebol profissional, mas também outras crianças, adolescentes adultos e idosos que buscam uma vida mais digna.

Estes são alguns dos problemas que são preocupantes e que terão que ser enfrentados com “muita garra e determinação” por todos e, sobretudo, por aqueles que têm responsabilidades na sociedade, em especial no futebol, se querem que ela se transforme para melhor, que seja mais equilibrada, justa e que as pessoas se sintam mais protegidas. É neste sentido que uma formação do atleta como um todo, como Homem, poderá contribuir para que os indivíduos e, consequentemente, o meio futebolístico, seja mais esclarecido, autêntico, tolerante na medida do possível, pois não se pode esquecer que a sociedade capitalista é competitiva e excludente: o futebol não caminha à margem dessa sociedade.

Postula-se que os atletas sendo bem preparados, em todos os seus âmbitos (físico, social, emocional etc.), a possibilidade de existir um adulto mais estruturado, e também a frequência da recolocação profissional, pode ser bem maior.



 
Lionel Messi em meio às crianças: diretor das divisões de base do Barcelona mira formação de homens, e não apenas de atletas no clube catalão

 

Universidade do Futebol – A sua dissertação de mestrado em ciências da religião trata das manifestações de religiosidade no futebol profissional paulista. Poderia explicar um pouco sobre como surgiu essa ideia e o processo de confecção do trabalho?

Clodoaldo Leme – Detectei a lacuna existente nos estudos relacionados ao impacto das crenças e práticas religiosas no futebol e percebi a importância de explorar o tema. No trabalho, procurei investigar as manifestações de religiosidade no futebol profissional paulista. Dentro do universo de pesquisa, escolhi cinco equipes que disputavam a primeira divisão do campeonato estadual (Sport Club Corinthians Paulista, Santos Futebol Clube, Sociedade Esportiva Palmeiras, São Paulo Futebol Clube e Associação Desportiva São Caetano). Os principais motivos da escolha dessas equipes foram: o grande espaço a elas atribuídas pelos meios de comunicação; por serem de “massa” ou “emergentes”; e também por serem o “objeto do desejo” de muitos atletas iniciantes e mesmo de profissionais consagrados do futebol.

De modo a entender a grande presença da religião e da religiosidade percebidas nos gramados brasileiros em tempos recentes – através de manifestações e relatos de atletas e integrantes de comissões técnicas –, busquei trabalhar em duas linhas, uma de caráter teórico-bibliográfico e, a outra, de caráter empírico. O caminho percorrido se iniciou pela colocação, em um contexto de pesquisa, dos aspectos representativos do futebol e suas conexões com a religião/religiosidade ao redor do mundo. O trabalho parte de uma História do futebol (das práticas “proto-futebolísticas” ao esporte moderno) e, a partir dela, à conexão com a realidade brasileira e paulista. Mostro, em seguida, as conexões dentro das equipes do objeto de estudo e, também, como foi constituído o trabalho de campo. Para compreender o porquê das manifestações de religiosidade no futebol, empreguei a teoria da Sociedade de Risco, de Ulrich Beck e, elementos da Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, que são essenciais no construto.

A aproximação das teorias risco/espetáculo em relação à realidade brasileira e, principalmente, ao “esporte das multidões”, em conjunto com a pesquisa de campo (realizada com vinte personagens do futebol), permitem concluir que o risco é um dos grandes motivadores das manifestações de religiosidade no futebol. Ou seja, o espiral risco/espetáculo, fruto do sistema sócio-econômico capitalista, competitivo e excludente, é determinante para a compreensão do trabalho.

Universidade do Futebol – Por que muitos no ambiente do futebol enxergam na religiosidade, em suas crenças e fé, um fator especial, potencializador, para obtenção de vitórias?

Clodoaldo Leme – Tendo em vista a presença significativa de manifestações de religiosidade entre atletas, nos times, entre técnicos de futebol e demais integrantes da comissão técnica – e segundo a opinião de muitos deles, de que a fé potencializa o desempenho esportivo -, uma crença religiosa pode ser um fator decisivo para esses colocarem em um contexto as chamadas “situações de risco” vividas em suas trajetórias, na sua vida dentro do mundo do futebol e na sua vida particular.

Vivemos em um mundo capitalista, e o capitalismo moderno se insere no futuro ao prever lucros e perdas – ou seja, ao “apostar no risco” - continuamente. Neste sentido, dentro do ambiente do futebol – que não é profissionalmente dos mais estáveis -, o atleta, além de ter que enfrentar os riscos do capitalismo, do “mercado futebolístico”, sofre também os riscos do seu meio de atuação.

Assim, não estando bem fisicamente, tecnicamente, taticamente, emocionalmente – fatores que determinam seu rendimento – o risco de ser descartado é grande, pois a competitividade é acentuada. Enfim, as manifestações de religiosidade no futebol são fruto do risco vivido por seus participantes; elas são evidenciadas materialmente por esse esporte ser um “grande espetáculo”.

Universidade do Futebol – Como treinadores e integrantes da comissão técnica interpretam a religiosidade nesse ambiente?

Clodoaldo Leme – A conduta frente ao fenômeno varia, é claro, de indivíduo para indivíduo. Nas entrevistas que realizei visando à construção do trabalho, houve respostas que legitimaram ou não a postura religiosa, mas o principal aspecto verificado foi que, em situações de risco, os procedimentos são os mesmos entre todos: acontecem rituais, apelos, ou qualquer outro “encontro” com o sobrenatural. Enfim, deve-se executar algum rito porque, se não for assim, os “deuses” se “enraivecem”; aplacados, os “deuses” ajudarão o indivíduo num momento de perigo, pois, como sugere Berger e Luckman: “o universo simbólico defende o indivíduo do supremo terror, outorgando uma legitimação fundamental às estruturas protetoras da ordem institucional”. Nesse sentido, os rituais controlam a ansiedade.

Universidade do Futebol – E a mídia especializada em futebol: é possível se traçar uma análise do registro religioso por parte dos profissionais da comunicação?

Clodoaldo Leme – Percebi que ações diferenciadas, incomuns, de atores do meio futebolístico, são utilizadas pela mídia como elemento de aproximação face ao universo religioso – nesse caso, certas atitudes se tornam “pecados”, certas vitórias “milagres” e certos indivíduos, “santos” (o melhor exemplo é o goleiro do Palmeiras no ano de 1999, quando a equipe conquistou a Copa Libertadores da América: “São” Marcos).



 
Marcos agradece, após defender pênalti e ser agraciado pela torcida palmeirense: jogador virou "santo" ao derrubar maior rival do clube

 

Universidade do Futebol – Como você avalia a questão dos chamados “Atletas de Cristo”, movimento nascido no final dos anos 1970, e, em contrapartida, os denominados “Bad Boys”, simbolizados nas figuras de Afonsinho – em uma noção mais libertária e de luta por democracia – e Edmundo?

Clodoaldo Leme – No que diz respeito ao posicionamento religioso, político, ou qualquer outra convicção relacionada ao rendimento dentro de campo, o que realmente vale é o atleta estar preparado para desempenhar (e bem) a sua função. Se suas atitudes (reacionárias ou libertárias) não interferem em seu rendimento, ele não terá maiores problemas, agora se acontecer o inverso... ele será descartado e condenado pela “sociedade”.

Acrescento: não diferente de pessoas que exercem outras funções sociais, o atleta de futebol busca o reconhecimento social e, para isso, na maioria das vezes, submete-se a situações constrangedoras. O ambiente não é propício a um processo de emancipação (há pouca possibilidade de enfrentamento, de quebra de regras), as reflexões são mínimas, o diálogo praticamente não existe – faça o que eu mando (é um ambiente regulatório, as regras são impostas). Assim, a possibilidade de existir um indivíduo autônomo, é muito difícil. As tradições também não podem ser quebradas – algo de mal pode acontecer. Há o lado bom: a necessidade de ter uma interação com o coletivo a fim de alcançar melhores resultados e a necessidade de ter que existir solidariedade, ou então o caminho se tornará mais penoso, entretanto, limitam-se a aceitar as regras porque elas valem no seu ambiente. Qualquer atitude que saia de um padrão convencional pode fazer com que o jogador seja descartado: tem que apanhar e ficar quieto, não pode criticar um árbitro que cometeu um erro grotesco (e como erram!), quando é sacado do time tem que colocar o rabo no meio das pernas e caminhar para o vestiário sem esboçar qualquer expressão (ai se ele se rebela!).

Não é ele que decide pelo seu próprio futuro. Neste percurso, por serem privados de um olhar crítico (apenas são criticados), por terem poucas possibilidades de aprender e desenvolver formas mais sofisticadas e eficazes de enfrentar dilemas morais ou conflitos sociais, eles se tornam prezas fáceis para as amarras da vida.

Pondero: a atitude libertária (de enfrentamento) pode colaborar mais com a configuração de um ambiente futebolístico digno para seus praticantes do que as atitudes religiosas (na maioria das vezes de aceitação). O assunto é polêmico e precisa ser mais debatido, explorado.

Universidade do Futebol – O atleta Dentinho, do Corinthians, já expressou publicamente ser de uma família budista, e como essa filosofia de vida o auxilia no desempenho do esporte de alto rendimento. Em suas pesquisas, você chegou a se deparar com casos excepcionais como este? O futebol brasileiro, de modo particular, é dominado por cristãos e evangélicos?

Clodoaldo Leme – A sociedade brasileira e, consequentemente, o futebol brasileiro, é composto em sua maioria por cristãos (católicos e protestantes). Sobre o budismo, me deparei com alguns atletas que relataram utilizar a meditação como uma maneira de aprender tranquilizar a mente, relaxar o corpo e desenvolver o poder de concentração. Aliás, a meditação, que não é religião e nem um sistema de crença que coloca um indivíduo contra os seus próprios valores religiosos e pessoais, pode ser de grande utilidade para os atletas, seja ele de alto nível ou não.

Universidade do Futebol – Pelé é “Rei”, expressão que já nos remete a uma ideia religiosa. Maradona, para os argentinos, é “Deus”, sendo representado até em uma igreja própria. É possível afirmar que os ídolos do futebol são construídos como seres sagrados, ou imagens sagradas, dotadas de uma série de características que os distinguem dos demais seres humanos?

Clodoaldo Leme – Em primeiro lugar, como diz Frank Usarski, espera-se um uso mais consciente e cuidadoso da noção do sagrado, pois se trata de uma palavra altamente problemática se aplicada como um termo teórico supostamente consensual ou até mesmo auto-explicativo. Porém, não se tem nada contra uma citação da expressão em prol da descrição de uma determinada crença compartilhada por membros de dada comunidade religiosa. Encontram-se, no mundo religioso, “livros sagrados”, sim. No entanto, afirmando-se isso em um contexto acadêmico, essa não deve ser uma confirmação de que tais textos são “realmente” manifestações do numinoso no mundo relativo. Mas, se for usado como uma referência a crentes que acreditam na qualidade sagrada da sua tradição escrita, o recurso à palavra é legitimo.

Sobre essa leitura no ambiente do futebol, o reconhecimento dos ídolos como seres “sagrados”, pode ser analisado tendo como pano de fundo a socialização do indivíduo. É uma questão psicossocial: quanto maior o significado que algum indivíduo (atleta ou não), ou uma instituição (religiosa ou não), tiver para outro indivíduo, tanto maior a possibilidade de existir, podemos dizer, uma “sacralização” desses seres de grande apelo popular, midiático.



 
Deus na Argentina, Maradona até ganhou uma igreja composta por seus seguidores; Clodoaldo sinaliza uso mais consciente e cuidadoso da noção do sagrado

 

Universidade do Futebol – Uma preparação corporal perfeita pode ser derrubada se não for acompanhada por um trabalho de fortalecimento e estabelecimento espiritual. Você acredita que o futebolista, de maneira geral, trabalha bem no sentido de encontrar o autoconhecimento e determinar suas crenças, demonstrando fé e interagindo com essa energia?

Clodoaldo Leme – Não percebo o trabalho espiritual como imprescindível. Em alguns casos ele pode colaborar e em outros, não. Isso varia de indivíduo para indivíduo. Depende da formação do sujeito; de como ele foi se constituindo. A pessoa pode ser boa naquilo que faz sem o estabelecimento de uma relação com o transcendente. O que acontece, e isso é um problema muito sério, é que os atletas, na maioria das vezes, não contam no decorrer do seu processo de formação (não apenas profissional, é claro) com pessoas que estejam preocupadas com a existência de equilíbrio em suas vidas: ele é preparado apenas para jogar futebol e ponto final.

Enquanto esta lógica continuar existindo neste ambiente, a manutenção de atletas alienados, fragilizados e dependentes continuará a ser percebida em grande escala. Aliás, como foi citado no começo da entrevista, poucos atletas vislumbram um projeto de vida emancipatório em busca de autonomia.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por seu comentário.
Em breve ele será moderado.
Benê Lima