Ações de sociabilização por intermédio do futebol inspiraram o cenário global em 2010. E a realização da primeira Copa do Mundo em continente africano é o símbolo majoritário do processo. Na esteira dessa atmosfera, o Promundo, organização não-governamental (ONG) brasileira que busca promover a igualdade de gênero e o fim da violência contra mulheres, crianças e jovens, criou um projeto pioneiro que agrega a modalidade esportiva com oficinas educativas: trata-se do Campeonato do Laço Branco.
Financiada pelo Fundo Fiduciário das Nações Unidas para Eliminar a Violência Contra a Mulher, a empreitada utilizou um torneio de futebol para atrair homens jovens e adultos para as oficinas educativas e debates na comunidade. Além do jogo, propriamente, os inscritos participaram de debates sobre prevenção de violência, igualdade de gênero, paternidade e cuidado.
No total, 140 homens atuaram durante seis meses em 99 jogos, 105 oficinas e 21 eventos. Uniformes personalizados, cartazes, panfletos, placares, trio de arbitragem profissional, brindes, além de diversos materiais e intervenções desenhadas pela equipe do Promundo em conjunto com os membros da comunidade, compuseram o projeto. Um jornal semanal com noticias sobre a campanha, o campeonato e a comunidade também foi desenvolvido.
“Nesse espaço tentamos questionar muitos dos valores machistas que existem na nossa sociedade, mas sem julgar as pessoas: a ideia é que cada homem escute, fale, e reflita sobre a vida e os relacionamentos dele”, explicou Fabio Verani, assistente sênior do Promundo, nesta entrevista àUniversidade do Futebol.
O principal alvo da campanha social foi promover a conscientização sobre o papel do homem e da comunidade no enfrentamento da violência contra as mulheres. A base ideológica da competição, de fato, era a confraternização entre os cidadãos.
O Campeonato Laço Branco foi um dos seis projetos selecionados entre as 293 iniciativas inscritas para concorrer ao prêmio regional Nike/Changemakers na categoria “Modificando vidas através do futebol” pelas ações realizadas pelo projeto durante esse ano na comunidade do morro Santa Marta, no Rio de Janeiro.
Fundado em 1997, o Promundo atua ainda na área de pesquisas relacionadas à igualdade de gênero e saúde, na implementação e na avaliação de programas que buscam promover mudanças positivas nas normas de gênero e nos comportamentos de indivíduos, famílias e comunidades e na advocacy pela integração dessas iniciativas e da perspectiva da igualdade de gênero em políticas públicas.
“Entendemos que o futebol, às vezes, tem um papel importante na disseminação de valores machistas e que podemos questionar algumas dessas atitudes machistas dentro do próprio esporte”, acrescentou Fabio, que é antropólogo de formação e se especializou na área de saúde pública.
Os desafios do Promundo incluem ainda a necessidade de fortificar as alianças entre as organizações que lutam pelos diretos das mulheres e outros movimentos de justiça social para engajar o setor privado, formadores de opinião, ídolos e que esse engajamento esteja integrado com a promoção de justiça de gênero de maneira ampla.
Universidade do Futebol – Qual a sua formação acadêmica e como se deu o seu ingresso no Promundo?
Fabio Verani – Eu me formei em Antropologia e depois fiz um mestrado em Saúde Pública. Trabalhei com assuntos ligados a saúde, direitos humanos, HIV e AIDS e gênero nos Estados Unidos e no Brasil.
Estou com o Promundo há três anos e meio trabalhando com publicações, incluindo um guia sobre ferramentas para trabalhar com homens e meninos na promoção de equidade de gênero; projetos de adaptações do Programa H (projeto e manual que busca engajar os homens na equidade de gênero), e também nessa iniciativa no morro de Santa Marta que aborda os homens para prevenir a violência contra a mulher.
*Nota da Redação: o Manual H é dividido em cinco livros: Sexualidade e Saúde Reprodutiva, Paternidade e Cuidado, Da violência para a convivência, Razões e Emoções e Prevenindo e vivendo com HIV/AIDS.
Os manuais do Programa H, disponíveis em português, espanhol e inglês, orientam o trabalho de sensibilização de homens jovens para o questionamento de normas sociais tradicionais de gênero.
Cada manual é composto de uma introdução teórica ao tema, técnicas de trabalho em grupo e um índice de referência de outros materiais, fontes e recursos de pesquisa. Para baixar cada um desses documentos, clique aqui.
Universidade do Futebol – O Promundo é uma ONG que tem como missão promover a igualdade de gênero e o fim da violência contra mulheres, crianças e jovens. De que forma o futebol aparece como aliado nesse processo?
Fabio Verani – Apareceu agora como estratégia para engajar homens adultos, utilizando o esporte. Entendemos que temos que buscar os homens nos lugares que eles frequentam – nesse caso, o campo de futebol. Também entendemos que o futebol, às vezes, tem um papel importante na disseminação de valores machistas e que podemos questionar algumas dessas atitudes machistas dentro do próprio esporte.
Estamos fazendo nossa avaliação do projeto e em 2011 devemos divulgar resultados do projeto. Também estamos fazendo um DVD curto com entrevistas e clipes do campeonato que deve ficar pronto no início de 2011.
Já conhecemos pelo menos uma organização (Sonke Gender Justice, na África do Sul) que está adaptando nossa metodologia de oficinas, campanha e futebol para seu contexto.
*Nota da Redação: a Sonke Gender Justice Network trabalha em toda a África para fortalecer o governo, a sociedade civil e a capacidade dos cidadãos para apoiar homens e meninos a tomar medidas para: promover a igualdade de gênero; prevenir a violência doméstica e sexual; e reduzir a disseminação e o impacto do HIV e da AIDS.
A organização contribui para o desenvolvimento de sociedades mais justas e democráticas, em que homens, mulheres, jovens e crianças possam desfrutar de relações de maneira equitativa, saudável e feliz.
A campanha One Man Can é o projeto principal da Sonke Gender Justice.
Universidade do Futebol – O Campeonato do Laço Branco é um projeto do Promundo que mistura o esporte com oficinas educativas. Por favor, explique um pouco mais sobre detalhes disso.
Fabio Verani – O futebol é utilizado como uma forma de mobilizar homens para participarem do projeto (mais especificamente das oficinas), assim como um evento semanal que traz grande público dentro da comunidade. Durante o evento em si podemos chegar a mais gente com materiais e informações da campanha para eliminar a violência contra mulher.
Apesar do fato de que as oficinas eram somente para os homens que jogavam no campeonato, eles passavam algumas das informações das oficinas para os outros moradores da comunidade e muitos tinham orgulho de participar da empreitada. As oficinas eram espaços onde os homens podiam conversar e ouvir as experiências e pensamentos de cada um.
Nesse espaço tentamos questionar muitos dos valores machistas que existem na nossa sociedade, mas sem julgar as pessoas: a ideia é que cada homem escute, fale, e reflita sobre a vida e os relacionamentos dele.
*Nota da Redação: Uma preocupante estatística expressa em recente estudo publicado pelo Instituto Sangari aponta que a violência doméstica mata 10 mulheres por dia no Brasil. O mapa da violência indica ainda que 41.532 das mulheres no Brasil foram assassinadas entre os anos de 1997 a 2007. O que significa que uma mulher foi morta a cada duas horas durante esses 10 anos.
O caso do jogador de futebol Bruno Fernandes atraiu ainda mais a atenção mundial para a urgente situação. Relatos da polícia evidenciam que a ex-namorada do jogador foi estrangulada e seu corpo foi jogado aos cães. Os restos mortais de Eliza Samudi ainda não foram encontrados e a polícia diz que Fernandes já tinha um histórico de violência registrado em seus autos. O primo do Bruno confessou ter assistido o jogador matar a mãe de seu filho recém nascido e acompanhado de amigos e familiares.
A brutalidade do incidente, entretanto, não é nada incomum ao se voltar os olhos para a realidade nacional – o índice de homicídios causados por violência domestica são de 25,2 por cada 100.000 pessoas.
Dessa forma, o Brasil ocupa o décimo lugar no ranking de países campeões de homicídio com intenção de matar no mundo. Os principais motivos que causam esses crimes são geralmente absurdos (dizer não para o sexo ou querer terminar a relação são a maioria).
Em 50 % dos casos, a justificativa é classificada como fútil, podendo ser originado em discussões domésticas. 10% são crimes passionais, relacionados a ciúmes, por exemplo, e 10 % são relacionados ao uso de drogas e tráfico.
O alvo do Promundo é diminuir significativamente a violência doméstica brasileira, relacionando de maneira estratégica o amor dos homens pelo futebol com oficinas informativas sobre prevenção de violência contra as mulheres.
Universidade do Futebol – Há uma metodologia especial nesse tipo de ação? Se é que é possível, de que forma ela poderia ser adaptada e aplicada em outros contextos?
Fabio Verani – Existe uma metodologia em temos das oficinas com os homens e também com a campanha na comunidade. As atividades que usamos nas oficinas foram adaptadas do Manual H (H para Homem) e outros trabalhos do Promundo e elas podem ser encontrado no site do Promundo (www.promundo.org.br).
O Manual H já foi utilizado e adaptado em muitos contextos e inclusive em muitos países diferentes. Frequentemente, o próprio Promundo ajuda outras instituições a adaptarem o manual e o projeto para seu contexto. Tivemos muito trabalho para adaptar o manual para esse trabalho e para desenhar esse projeto.
Tanto o manual do projeto de futebol, como algumas lições aprendidas e as ferramentas que usamos, será disponibilizado em breve no nosso site, também.
Nossa ideia como instituição é de incentivar e ajudar outras instituições a fazerem o mesmo trabalho ou adaptarem e utilizarem o máximo possível nossos materiais e metodologias.
Vídeo apresenta a história de Maria, uma menina como muitas outras, que começa a questionar as expectativas de como ela deve ou não deve ser
Universidade do Futebol – O cenário atual do mundo é também inspirar a mudança social por intermédio do futebol? Em sua opinião, como liberar o potencial de jovens, para que estes fortaleçam suas comunidades, alavanquem o desenvolvimento e promovam mudanças?
Fabio Verani – Confiando neles e envolvendo-os em ações nas quais os próprios possam criar ou ajudar a criar. No caso do futebol como inspirador de mudança social, acredito que também temos que estar cientes de como o esporte já está carregado de muitos valores que podemos considerar machistas ou negativas e estar disposto a questionar esses valores, além de valorizar outras muitas coisas que são positivas no esporte.
Universidade do Futebol – Você acredita que é possível pensar a formação de jovens jogadores de futebol sem a criação de um programa que gerencie o crescimento pessoal, social e profissional de modo interdisciplinar?
Fabio Verani – Não sei. Não trabalhamos com esporte, em geral. Ouvimos dos jogadores é que este foi um ótimo campeonato, com muita paz, especificamente por causa do conteúdo social e das oficinas das quais todos os homens participaram.
Universidade do Futebol – Ao se pensar na forma como o futebol se constrói na nossa sociedade, naturalizado como uma prática masculina (entendida como sinônimo de heterossexualidade), a ideia de um homem gay gostar de futebol pode ser concebida em algum momento?
Fabio Verani – Obviamente, muitos homens gays gostam de futebol e jogam futebol (inclusive profissionalmente), mas devido ao fato que o futebol é carregado de muitos preconceitos e estereótipos machistas, que vêm da nossa sociedade, viver a sexualidade abertamente no mundo de futebol profissional é ainda muito difícil.
Além disso, como mencionei antes, o futebol contém muitos valores machistas que incluem muitas atitudes extremamente homofônicas, as quais podemos ver refletidas de maneira geral no esporte, em jogadores, torcedores, técnicos, diretores e na mídia esportiva.
Machismo e homofobia no futebol brasileiro
Universidade do Futebol – Em se considerando que a virilidade acompanha o prazer pelo futebol, o que fazer quando se é gay e o futebol é uma das paixões desse indivíduo? Esse tipo de questão também é tratado no Promundo?
Fabio Verani – Não trabalhamos a questão de um homem gay gostar ou não gostar de futebol, pois qualquer opção (gostar ou não gostar de futebol) é completamente normal. O fato de a nossa sociedade ainda pensar em estereótipos sobre o que um homem gay (ou uma mulher lésbica) deve gostar ou fazer reflete o machismo. Como também achar que um homem heterossexual tem que gostar de futebol (e não de dança ou arte, por exemplo) também reflete muito machismo. Tentamos é quebrar esses estereótipos e preconceitos com os homens e mulheres.
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Benê Lima