Caros Leitores,
Impossível, nesta última semana de Campeonato Brasileiro 2010, deixar de tecer breves linhas sofre o fenômeno “mala branca”. Inicialmente, convém delimitar o que se entende, no jargão do futebolês, como sendo esta ocorrência. Tem-se por “mala branca” o incentivo financeiro oferecido por terceiros interessados na vitória de alguma agremiação que não aspira maiores resultados na competição. Geralmente, estes terceiros são clubes que ainda pelejam, no caso do Campeonato Brasileiro, por uma vaga para a Copa Libertadores da América, para não ser rebaixado para a Série B ou, ainda, pelo próprio título nacional.
Esta realidade, apelidada de doping financeiro, ocupa a pauta de redações de jornais, rádios e televisão, sendo constante objeto de debate. E, hoje, é tida como usual e comum no futebol, aliás, uma práxis antiga. Em entrevista recente para o portal Globo Esporte, o Rei do Futebol, Pelé, asseverou: o que o pessoal confunde é de você ter um prêmio para ganhar uma partida, isso sim. É como você dá um incentivo para o aluno tirar uma nota boa. É diferente de você oferecer dinheiro para entregar o jogo, isso é um absurdo.[1]
Merece destaque que a dita “mala branca” tem como o escopo incentivar uma agremiação a obter um resultado positivo, uma vitória ou um empate, nunca uma derrota. As relações ocorrem entre uma das equipes envolvidas na partida e terceiros que se beneficiarão com o resultado. Não se admite como tal, a hipótese em que se paga para a equipe perder o jogo.[1]
Porque a “mala branca” floresce no futebol brasileiro?
Poder-se-ia responder esta questão por meio de justificativas que, também, circulam na própria mídia: a falta de pagamento de salários, uma chance de ganhar um pouco mais no final da temporada, etc. Todavia, a resposta a questão nos é dada pelo atual presidente do Fluminense Roberto Horcades, de forma oblíqua: acho que o futebol brasileiro chegou em um estado de profissionalização que não permite mais esse tipo de situação de mala branca ou preta. O Fluminense repudia e sempre repudiou na sua história e preza pelo bom comprometimento técnico das competições.[1] Embora não tenha ele dito que falta profissionalismo por partes dos clubes que utilizam deste expediente, depreende-se de sua afirmação esta conclusão.
Não se pretende aqui investigar as razões pelas quais ainda no futebol brasileiro admite e convive com este incentivo financeiro, apesar de não ser possível deixar de falar rapidamente sobre isso.
O objeto do debate é avaliar a sua manifestação à luz da novel modificação no Estatuto do Torcedor, especialmente, se haveria subsunção deste tipo de conduta às normas penais incriminadoras ali existentes. Por oportuno, adentrar também no CBJD e avaliar se não se trataria de infração disciplinar.
Com o advento da Lei n° 12.299/10, o Estatuto do Torcedor sofreu consideráveis alterações, sendo criado um capítulo exclusivo para abrigar seis crimes, três tratam de alteração ou falseamento da competição esportiva. Ei-los:
Art. 41-C. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva:
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.
Art. 41-D. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva:
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.
Art. 41-E. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva:
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa
Cediço que o bem jurídico protegido é a ética e a moralidade das relações esportivas.
Protegem-se tais valores por meio do direito penal porque o prejudicado com a ofensa a tais feridas é o consumidor de eventos esportivos, o torcedor nos termos do Estatuto. Veja-se, ainda, que somente existirá o tipo penal se as condutas descritas ocorrerem em certames profissionais (art. 43).
Força convir que a descrição típica do art. 41-C demanda que a solicitação ou aceite de vantagem (patrimonial ou não) tenha como escopo alterar ou falsear o resultado de uma partida ou prova. Este tipo se destina aos árbitros dos certames ou quem tenha condição de exercer os verbos-núcleo do tipo. Como a alteração ou falseamento de um resultado é conduta inerente a quem o fiscaliza, seja anotando a súmula ou aferindo os resultados produzidos na partida ou prova, vê-se, então, que este crime é considerado como próprio. Por exemplo, se um fiscal de prova insere na súmula que um atleta após saltar obteve resultado menor do que de fato se constatou in loco.
No Brasil, este tipo penal nasceu em virtude do escândalo ocorrido no Campeonato Brasileiro de 2005 (Máfia do Apito[1]), quando o árbitro Edilson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon teriam atuado em diversas partidas com o escopo de alterar o resultado, influindo consideravelmente marcado penalidades ou faltas perigosas para atingir sua meta.
O artigo seguinte é próprio àquele que deu ou prometeu dar vantagem (patrimonial ou não), portanto, seria aqui imputado o responsável pela “contratação do árbitro” ou daquele que alterou ou falseou o resultado. Portanto, está exclusivamente atrelado ao tipo penal comentado anteriormente.
O tipo penal descrito no art. 41-E pode ser compreendido em conduta a ser praticada por um atleta, não sem razão, o Dr. Paulo Castilho, recentemente, o citou quando da realização do Grande Prêmio de Fórmula 1 no autódromo de Interlagos, em São Paulo, fazendo referência ao chamado “jogo de equipe”, dizendo que se o piloto Felipe Massa permitisse que o seu companheiro, Fernando Alonso, o ultrapassasse para ganhar a prova, incorreria na comissão delitiva acima declinada[1].
No pretendo aqui incursionar no mérito desta questão – apesar de discordar da avaliação do festejado promotor de justiça-, pois o centro do debate reside sobre a “mala branca”.
O que constituiria o tipo penal em comento?
Fraudar significa se valer de artifício[1] ou ardil[1] ou outro meio[1] para enganar alguém, no caso a vítima.
Este “alguém” é o torcedor, aquele que adquiriu ingresso para ver uma partida em que as equipes atuem em campo enlevadas por motivos nobres, inerentes à prática do desporto, qual seja, a obtenção de um resultado positivo.
Na hipótese do incentivo financeiro de terceiros para que se vença um jogo é difícil a sua subsunção ao tipo penal do art. 41-E, pois a vitória num certame é a meta de qualquer equipe. Fraudar seria se a equipe, ou alguns de seus componentes, adentrasse o gramado com o objetivo nítido e definido de perder a partida. Caso se deseje punir a “mala branca” teríamos também que punir os próprios dirigentes das equipes que prometem e pagam o famoso “bicho”[1].
D’outro giro, na seara do Direito Desportivo Disciplinar, igualmente não se pode subsumir esta conduta às normas hoje vigentes. No capítulo V, Livro III (Infrações em espécie), do CBJD, se encontram as normas disciplinares que protegem o bem jurídico ética desportiva. Entre elas duas se destacam como mais próximas de compreender a manifestação humana aqui debatida, ei-las:
Art. 243. Atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende.
PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias.
§ 1º Se a infração for cometida mediante pagamento ou promessa de qualquer vantagem, a pena será de suspensão de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias e eliminação no caso de reincidência, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
§ 2º O autor da promessa ou da vantagem será punido com pena de eliminação, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Art. 243-A. Atuar, de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente.
PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.
Parágrafo único. Se do procedimento atingir-se o resultado pretendido, o órgão judicante poderá anular a partida, prova ou equivalente, e as penas serão de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de doze a vinte e quatro partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.
Novamente, colhe-se que a redação legal, tal qual no Estatuto, revela-se insuficiente para compreender o incentivo financeiro para que uma equipe ganhe uma partida. O primeiro tipo disciplinar demanda que os atletas atuem com de modo prejudicial à equipe, leia-se, perder o jogo intencionalmente ou ceder empate quando esteja ganhando, por exemplo.
O art. 243-A, aparentemente, resolve a questão, ao fixar ser proibido atuar com o fim de influenciar o resultado da partida, de maneira contrária à ética desportiva. Esta redação pode, num primeiro instante, nos fazer crer que a “mala branca”, finalmente, tenha sido tipificada. Todavia, é postulado comezinho da ética desportiva a atuação com o objetivo de vencer, respeitando o chamado fair play.[1]
Assim, como punir aquele que deseja vencer, ainda que movido por interesses financeiros?
Afinal, não se pode negar que, atualmente, o atleta é um profissional e vive do seu esforço pessoal para ganhar a vida. É uma tarefa árdua conjugar o interesse econômico com os valores éticos desportivos. E, neste particular, o doping financeiro afronta somente a pura moral e não as regras jurídicas, vez que não há fraude ao resultado do jogo. A se considerar que o aceite deste incentivo sirva como móvel será contraditório admitir-se como normal o ganho de bichos ou premiações de artilheiro ou de melhor jogador oferecidas aos atletas, seja pelo clube em que atuam ou entidades organizadoras do esporte.
Seria, portanto, ofensa à ética esportiva querer ser o artilheiro, independente dos resultados da equipe? Esta é uma questão que também viria à tona, dentre outras que surgiriam, caso a interpretação do art. 243-A, do CBJD, fosse estendida às raias do extremo subjetivismo.
Evidencia-se, portanto, que a tão decantada “mala branca” é apenas um ato imoral, à luz de uma ética pura do esporte e também dentro da perspectiva do profissionalismo que este assume como bussiness. Ainda assim, algumas vozes hão de surgir em sentido contrário.
De fato e respondendo a questão que serve de título: tem-se que “mala branca” não é crime, nem mesmo infração disciplinar.
Nota:
[1] Sobre a “Máfia do Apito”, Carlos Miguel Aidar e Alexandre Ramalho Miranda escreveram uma coluna no Site do IBDD, tecendo análise histórica e crítica sobre o ocorrido. Disponível em: Máfia do Apito. Acessado em 01 dez. 2010.
*Milton Jordão é Advogado Criminalista, Procurador do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia, Diretor Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia, Colunista dos sites do IBDD e IDDBA. E-mail: mjordao@iddba.com.br.
Fonte: IBDD - www.ibdd.com.br
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Benê Lima